Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 144/2021
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 283/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Autoriza o Poder Executivo a disponibilizar, qualificar e capacitar profissional técnico habilitado – Médico Veterinário – para fins de coleta de materiais para realização de todos os exames necessários para o Desfile Farroupilha no Município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório

O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 144/2021 à Câmara Municipal, visando autorizar o Poder Executivo a disponibilizar, qualificar e capacitar profissional técnico habilitado – Médico Veterinário – para fins de coleta de materiais para realização de todos os exames necessários para o Desfile Farroupilha no Município de Guaíba. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende instituir obrigação ao Poder Executivo Municipal, no sentido da disponibilização e capacitação de Médico Veterinário para coletar materiais necessários à realização de exames em animais que participarão do Desfile Farroupilha. Apesar do mérito, a matéria invade a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes (art. 2º da CF/88), por dispor sobre obrigação que deve ser atendida pelo Executivo, através de seus órgãos, sob a responsabilidade do Prefeito.

O Projeto de Lei nº 144/2021, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer obrigação sob a responsabilidade do Poder Executivo no sentido da disponibilização e qualificação de Médico Veterinário para coletar materiais necessários à realização de exames em animais que participarão do Desfile Farroupilha, por tratar-se de tema de competência privativa do Prefeito. Veja-se, nessa perspectiva, a jurisprudência específica sobre essa matéria no TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 1.897/2018 DO MUNICÍPIO DE PIRATINI. DESFILE MUNICIPAL DO 20 DE SETEMBRO. EXAMES EM EQUINOS. OBRIGATORIEDADE DE DISPONIBILIZAÇÃO PELO PODER EXECUTIVO DE SERVIDOR MUNICIPAL PARA COLETA DO MATERIAL. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. COMPETÊNCIA DE INICIATIVA LEGISLATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO EXECUTIVO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. 1. A Lei nº 1.897/2018 do Município de Piratini impõe ao Poder Executivo a obrigação de disponibilizar médico veterinário do quadro efetivo, a fim de possibilitar a participação de equinos no Desfile do 20 de Setembro realizado na municipalidade, para efetuar a coleta do material necessário para realização do exame de mormo e de anemia. 2. A lei impugnada, assim, trata de matéria essencialmente administrativa, concernente ao funcionamento da Administração Municipal, notadamente na atuação de servidor público, de modo que o Legislativo invadiu competência privativa do Chefe do Executivo para dispor sobre as atribuições de secretarias e órgãos da Administração Pública. Violação ao disposto nos artigos 60, II, “d”, e 82, III e VII, da CE/89, aplicáveis aos municípios por força do art. 8º, caput, da mesma Carta. Vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal verificada. Ofensa ao Princípio da Separação e Independência dos Poderes consagrado no art. 10 da CE/89. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70084288315, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em: 25-09-2020)

O Projeto de Lei nº 144/2021 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 144/2021 contém vício de iniciativa, por dispor sobre um programa que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e do artigo 119, II, da Lei Orgânica.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com fundamento no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente o programa.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 144/2021, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como por violação ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Sugere-se que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente o programa.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 9 de setembro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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09/09/2021 14:54:57
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