Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 141/2021
PROPONENTE : Ver. Ale Alves
     
PARECER : Nº 275/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui no Município de Guaíba, obrigatoriedade de apresentação de Carteira de Vacinação COVID-19"

1. Relatório

O Vereador Ale Alves apresentou o Projeto de Lei nº 141/2021 à Câmara Municipal, visando instituir, no Município de Guaíba, a obrigatoriedade de apresentação de carteira de vacinação da COVID-19. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende instituir programa sob a responsabilidade do Poder Executivo Municipal, através da Secretaria de Saúde, para a emissão de carteira de vacinação contra a COVID-19, na qual devem constar o nome completo, data de nascimento, laboratório e data da imunização dos vacinados. Apesar do mérito, a matéria invade de modo indevido a denominada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes (art. 2º da CF/88), por dispor sobre programa que deve ser implementado pelo Executivo, através de seus órgãos, sob a responsabilidade do Prefeito.

O Projeto de Lei nº 141/2021, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer a emissão de carteira de vacinação contra a COVID-19 por parte da Secretaria Municipal de Saúde, por se tratar de matéria de competência privativa do Prefeito, na seara da sua discricionariedade. Nesse sentido, veja-se a jurisprudência do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO. SERVIÇO DE ATENDIMENTO DOMICILIAR A PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS, TRANSITÓRIAS OU PERMANENTES, PARA VACINAÇÃO. INICIATIVA LEGISLATIVA. VÍCIO FORMAL FLAGRADO. MATÉRIA AFETA AO PODER EXECUTIVO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 61, §1º, II, B, DA CRFB. CUMPRIMENTO DA LEI QUE ACARRETARÁ AUMENTO DE DESPESA. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGOS 149, INCISOS I, II E III, E 154, INCISOS I E II, DA CARTA ESTADUAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70075829416, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 12-03-2018)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. NORMA MUNICIPAL QUE INSTITUIU PROGRAMA DE VISITA EM DOMICÍLIO, COM A FINALIDADE DE VACINAR AS PESSOAS IDOSAS. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR QUE CRIA ATRIBUIÇÕES PARA A ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL, MATÉRIA DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VÍCIO DE NATUREZA FORMAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70027639954, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Maria Nedel Scalzilli, Julgado em: 08-06-2009).

ACAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.3489, DE 23 DE MARCO DE 1999, DO MUNICIPIO DE BAGE, DISPONDO SOBRE TRANSPORTE COLETIVO GRATUITO EM DIAS DE VACINA. LEI DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO MUNICIPAL E POR SEU PRESIDENTE PROMULGADA. POR OFENSA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 10 E 82, INCISO VII, DA CONSTITUICAO ESTADUAL, VICIADA DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E LEI N.3489, DE 23 DE MARCO DE 1999 DO MUNICIPIO DE BAGE/RS, QUE DISPOE SOBRE TRANSPORTE COLETIVO GRATUITO NOS DIAS DE VACINACAO, POR TRATAR-SE DE MATERIA EMINENTEMENTE ADMINISTRATIVA, CUJA EXCLUSIVA INICIATIVA DO PROCESSO LEGISLATIVO PERTENCE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AÇÃO QUE SE JULGA PROCEDENTE. (16 FLS). (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70001165356, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Osvaldo Stefanello, Julgado em: 30-10-2000).

O Projeto de Lei nº 141/2021 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Assim, embora seja admirável a justificativa, o Projeto de Lei nº 141/2021 contém vício de iniciativa, por dispor sobre um programa que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e do artigo 119, II, da Lei Orgânica.

No Município de São Paulo, por exemplo, o chamado “Passaporte da Vacina”, cujo objetivo é similar ao do Projeto de Lei nº 141/2021 (condicionar o exercício de determinados direitos individuais à comprovação de prévia vacinação contra a COVID-19), foi instituído por iniciativa do Prefeito, através do Decreto nº 60.488/2021, a partir de QR Code disponível no aplicativo “E-saúde”, criado também no âmbito do Poder Executivo, sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde. Além disso, ficou determinada a medida apenas aos estabelecimentos e serviços ligados ao setor de eventos, para públicos superiores a 500 pessoas, sendo recomendada a mesma medida em relação aos demais estabelecimentos:

DECRETO Nº 60.488, DE 27 DE AGOSTO DE 2021

Dispõe sobre a instituição do Passaporte da Vacina e estabelece a sua exigência para acesso a estabelecimentos.

RICARDO NUNES, Prefeito do Município de São Paulo, no uso das atribuições que lhe são conferidas por lei, CONSIDERANDO a retomada segura prevista pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio do Decreto Estadual nº 65.897, de 30 de julho de 2021, com o fim das restrições de horário para comércio e serviços, com ocupação de até 100%, nos estabelecimentos; CONSIDERANDO o Decreto nº 60.396, de 23 de julho de 2021 que autoriza a realização de feiras, convenções, congressos e outros eventos; CONSIDERANDO a situação atual da Pandemia de COVID-19 no Município de São Paulo que aponta a redução das internações, casos e óbitos em decorrência da COVID-19; CONSIDERANDO o avanço da vacinação contra Covid-19, com grande participação da população do Município de São Paulo; CONSIDERANDO que as medidas não farmacológicas são estratégias essenciais para a supressão e mitigação da transmissibilidade da COVID-19,

D E C R E T A:

Art. 1º Fica instituído o Passaporte da Vacina, na forma de QR Code, disponível no aplicativo – E-saúde, da Secretaria Municipal da Saúde.

Art. 2º Os estabelecimentos e serviços pertencentes ao setor de eventos, tais como shows, feiras, congressos e jogos, com público superior a 500 pessoas, deverão, a partir do dia 1º de setembro de 2021, solicitar ao público, para acesso ao local do evento, comprovante de vacinação do cidadão contra COVID-19, que será autenticado pelo Passaporte da Vacina previsto no artigo 1º deste decreto.

§ 1º Para os fins do disposto no “caput” deste artigo, será exigida, no mínimo, a comprovação da primeira dose da vacina.

§ 2º A comprovação da condição vacinal também poderá ser realizada pelo registro físico, mediante apresentação do comprovante de vacinação, ou de forma digital disponível nas plataformas VaciVida e ConectSUS.

Art. 3º Fica recomendado a todos os estabelecimentos no Município de São Paulo que solicitem, para acesso das pessoas às suas dependências, comprovante de vacinação contra COVID-19, nos termos do artigo 2º deste decreto.

Art. 4º Os estabelecimentos que não respeitarem as regras e restrições previstas neste decreto e os demais protocolos estabelecidos ficarão sujeitos às penalidades cabíveis, conforme preconizado pelo Decreto nº 59.298, de 23 de março de 2020.

Art. 5º A Secretaria Municipal da Saúde manterá o monitoramento da evolução da pandemia da COVID-19 no Município de São Paulo por meio de análises epidemiológicas, podendo elaborar novas recomendações a qualquer tempo, considerando as diretrizes emanadas pelas demais autoridades de saúde.

Art. 6º Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação.

Dessa forma, reforça-se que a inconstitucionalidade flagrante que está a determinar a devolução do Projeto de Lei nº 141/2021 é a formal, por vício de iniciativa, na medida em que o processo legislativo deveria ter sido deflagrado pelo Prefeito, por ser o responsável último pela organização administrativa que deverá, por efeito da medida, ser mobilizada para a criação da carteira de vacinação e sua distribuição aos munícipes. Portanto, é recomendável que a proposição seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito avalie a implementação dessa política no Município de Guaíba.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 141/2021, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e por violação ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Sugere-se que a proposição seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito avalie a implementação dessa política no Município de Guaíba.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 2 de setembro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:
ICP-BrasilGUSTAVO DOBLER:02914216017
02/09/2021 10:25:17
Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 02/09/2021 ás 10:24:45. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação 8f5c93b11b75c21adbac0f0358be02bd.
A autenticidade deste poderá ser verificada em https://www.camaraguaiba.rs.gov.br/autenticidade, mediante código 98604.