Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 134/2021
PROPONENTE : Ver. Tiago Green
     
PARECER : Nº 271/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Estabelece o mínimo de três horas-aula de educação física nas escolas de educação básica"

1. Relatório

O Vereador Tiago Green apresentou o Projeto de Lei nº 134/2021 à Câmara Municipal, objetivando estabelecer o mínimo de três horas-aula de educação física nas escolas de educação básica do Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma inscrita no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido –, no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como o instituto do controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

Tal feixe de competências é de observância obrigatória por parte de todos os entes federados – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios –, havendo, também, disposição expressa na Constituição Estadual Gaúcha de que os Municípios devem obediência aos princípios estabelecidos na Carta Estadual e na Constituição Federal (art. 8º). Desse mandamento, então, surge o dever de o Município de Guaíba, ao firmar a sua legislação, ter especial atenção ao que dispõe a CF/88 sobre distribuição de competências legislativas, para que não usurpe competências de outros entes, violando o pacto federativo.

E, nesse sentido, a matéria que diz respeito às diretrizes e bases da educação nacional é de competência legislativa privativa da União (art. 22, XXIV, da CF/88), sendo regulada pela Lei Federal nº 9.394/1996, que estabelece os elementos dos currículos da educação nacional, inclusive em relação à educação física, constante no art. 26, § 3º:

Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)

§ 3º A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

II – maior de trinta anos de idade; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

V – (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

VI – que tenha prole. (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

Há, atualmente, na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL nº 3047/2015) em tramitação com o objetivo de alterar o § 3º do art. 26 da Lei Federal nº 9.394/1996, no sentido de fixar a carga horária semanal de duas horas-aula, em dias alternados, para a educação física. O projeto tem origem no Senado Federal (PLS nº 249/2012) e, por ter sido aprovado, foi remetido à Câmara dos Deputados para que nela também seja deliberado, de modo que fica evidenciado o interesse nacional na regulamentação da matéria, a atrair a competência legislativa privativa da União.

Além disso, o Projeto de Lei nº 134/2021, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição Estadual, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar disciplinar a carga horária da educação física nas escolas municipais, por tratar-se de matéria de competência privativa do Prefeito, com o apoio e a participação do sistema municipal de ensino (art. 145 da Lei Orgânica Municipal), ao qual compete formular e administrar as políticas educacionais, respeitados os preceitos constitucionais federais e estaduais:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DIREITO CONSTITUCIONAL. LEI 1.516/2015 DO MUNICÍPIO DE NOVO GAMA – GO. PROIBIÇÃO DE DIVULGAÇÃO DE MATERIAL COM INFORMAÇÃO DE IDEOLOGIA DE GÊNERO EM ESCOLAS MUNICIPAIS. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA LEGISLATIVA DA UNIÃO. DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (ART. 22, XXIV, CF). VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS ATINENTES À LIBERDADE DE APREENDER, ENSINAR, PESQUISAR E DIVULGAR O PENSAMENTO A ARTE E O SABER (ART. 206, II, CF), E AO PLURALISMO DE IDEIAS E DE CONCEPÇÕES PEDAGOGICAS (ART. 206, III, CF). PROIBIÇÃO DA CENSURA EM ATIVIDADES CULTURAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO (ART. 5º, IX, CF). DIREITO À IGUALDADE (ART. 5º, CAPUT, CF). DEVER ESTATAL NA PROMOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À DESIGUALDADE E À DISCRIMINAÇÃO DE MINORIAS. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL RECONHECIDAS. PROCEDÊNCIA. 1. Compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV), de modo que os Municípios não têm competência legislativa para a edição de normas que tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente. [...] Inconstitucionalidade formal. [...] 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente. (ADPF 457, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-137 DIVULG 02-06-2020 PUBLIC 03-06-2020)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE PIRAPÓ. LEI MUNICIPAL. INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO. INCLUSÃO DE NOÇÕES BÁSICAS DA LEI MARIA DA PENHA NA GRADE CURRICULAR DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO. INCONSTICIONALIDADE POR VÍCIO DE ORIGEM. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUMENTO DE DESPESAS PÚBLICAS. VEDAÇÃO. PRECEDENTES. 1. Caracterizada violação ao princípio da separação dos poderes (art. 10, CE/89), na hipótese em que lei de iniciativa parlamentar é editada para tornar obrigatório, nas escolas públicas do Município de Pirapó, o ensino de noções básicas sobre a Lei Federal 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), havendo, inclusive, previsão de que a execução da norma ficará a cargo da Secretaria Municipal de Educação. 2. A lei impugnada versa sobre matéria eminentemente administrativa, e interfere sensivelmente na organização e no funcionamento de órgãos da administração direta do Poder Executivo municipal, motivo pelo qual a iniciativa para deflagrar processo legislativo acerca dessa temática compete ao prefeito, nos termos do 8º, caput, 10, 60, inciso II, alínea “d”, 82, incisos III e VII, todos da Constituição Estadual de 1989. Precedentes deste Órgão Especial. [...] Jurisprudência deste Tribunal. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70081273146, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em: 11-09-2019)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE CANOAS. LEI Nº 6.399/2020. PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PELA REDE MUNICIPAL DE ENSINO. VÍCIO DE INICIATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 1. Lei nº 6.399/2020, do Município de Canoas, que estabelece diretrizes de valorização de mulheres e meninas e ações para a prevenção e o combate à violência contra a mulher pela rede municipal de ensino. 2. Lei de origem parlamentar que interfere no funcionamento e organização da Administração Municipal, logo a iniciativa para apresentar a proposição legislativa compete ao chefe do Poder Executivo Municipal. 3. Padece de inconstitucionalidade formal a Lei Municipal, de iniciativa do Poder Legislativo, dispondo sobre matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Afronta ao disposto nos artigos 8º, “caput”, 10, 60, inciso II, alínea “d”, 82, incisos III e VII, todos da CE/89. [...] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE. UNÂNIME. (ADI Nº 70084788413, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em: 16-04-2021)

O Projeto de Lei nº 134/2021 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 134/2021 contém vício de iniciativa, por dispor sobre uma política que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e do artigo 119, II, da Lei Orgânica.

3. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela devolução ao proponente, mediante despacho fundamentado, da proposição em epígrafe, em razão de incompetência do Município para legislar sobre a matéria específica (art. 22, XXIV, da CF/88) e de vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS), bem como por violação aos arts. 119, II, e 145 da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 1º de setembro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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01/09/2021 11:56:03
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