Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Emenda à Lei Orgânica n.º 005/2021
PROPONENTE : Ver.ª Leticia Maidana
     
PARECER : Nº 264/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Inclui o art. 158-Aà Lei Orgânica Municipal, para dispor sobre o destaque, nos currículos escolares do sistema municipal de ensino, de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar, com fundamento no art. 8º, inciso IX, da Lei Maria da Penha"

1. Relatório

A Vereadora Leticia Maidana apresentou o Projeto de Emenda à Lei Orgânica nº 005/2021 à Câmara Municipal, objetivando incluir o art. 158-A à Lei Orgânica Municipal, para dispor sobre o destaque, nos currículos escolares do sistema municipal de ensino, de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar, com fundamento no art. 8º, inciso IX, da Lei Maria da Penha. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

2.1 Da competência legislativa municipal

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

As matérias de educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação estão previstas como competências concorrentes, atribuídas à União, aos Estados e ao Distrito Federal, como se vê:

Art. 24 Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

[...]

IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

Na competência concorrente, a União tem por tarefa estabelecer normas gerais sobre as matérias especificadas no artigo 24, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal suplementá-las de acordo com as suas peculiaridades regionais (§§ 1º e 2º). Os Estados e o Distrito Federal só possuem autorização constitucional para legislar plenamente caso a União não tenha editado normas gerais; do contrário, deverão obrigatoriamente respeitá-las, especificando suas regras à luz do ordenamento federal.

Os Municípios, por sua vez, sob a ótica do artigo 24 da CF/88, não estão legitimados a legislar concorrentemente sobre esses temas. Sua competência legislativa está adstrita ao previsto no artigo 30 da CF/88, limitando-se, basicamente, aos assuntos de interesse especificamente local e à suplementação da legislação federal e estadual, no que couber.

No campo da competência suplementar dos Municípios, estes estão legitimados a complementar as normas editadas com base no artigo 24 da CF/88, desde que respeitados os aspectos gerais do regramento objeto da suplementação. Resumidamente, os Municípios só podem legislar na competência suplementar caso existam, de fato, normas federais ou estaduais sobre a matéria e se respeite o campo de abrangência das leis complementadas.

Nesses termos, a interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências é a que veda aos Municípios a atividade legislativa apenas sobre matérias que esbarrem na competência privativa do art. 22 da CF/88, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base no interesse local sobre matérias de competência concorrente. Tanto é que, do contrário, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários municipais (“proteção e defesa da saúde” – art. 24, XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – art. 24, VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – art. 24, I).

Veja-se que, na jurisprudência, é acolhido o entendimento da competência legislativa “suplementar complementar” dos Municípios para legislarem sobre matérias versadas no art. 24 da CF/88, desde que respeitadas as normas constitucionais e infraconstitucionais:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI 10.432/12 DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE - PROIBIÇÃO DE VENDA DE CIGARROS AVULSOS - MATÉRIA DE INTERESSE LOCAL - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. - Embora a competência para legislar sobre produção e consumo seja concorrente entre a União e os Estados, assegura-se ao Município competência para suplementar a legislação federal e estadual no que couber e legislar sobre assuntos de interesse local, nos termos do artigo 30, da CF e artigos 10 e 169, da Constituição Estadual. - Inexiste inconstitucionalidade na Lei 10.432/12, do Município de Belo Horizonte, ao dispor sobre a proibição da venda de cigarros avulsos, por se tratar de questão afeta a direito do consumidor, de nítido interesse local, e por não haver conflito com a legislação federal. - Improcedência da representação. V.V. (TJ-MG - Ação Direta Inconst: 10000120699962000 MG, Relator: Heloisa Combat, Data de Julgamento: 10/04/2013, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 17/05/2013)

DIREITO CONSTITUCIONAL. REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 5.555/13 DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR MUNICIPAL. ALCANCE. [...] 1. Decorre da competência legislativa municipal suplementar (CRFB, art. 30, II, e CERJ, art. 358, II) Município editar lei que suplemente, no que couber, atos legislativos da competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, logo, daquela e do Estado do Rio de Janeiro, sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e sobre previdência social, proteção e defesa da saúde (incisos VIII e XII dos arts. 24 e 74, respectivamente das Constituições da República e fluminense); precedentes do STF. 2. Basta interesse também local, não uma especificidade municipal, para que Município possa exercer competência legislativa suplementar; o descabimento só se configura quando a lei municipal dispõe mais do que a ordem normativa a ser por ela suplementada ou quando a lei do Município entra em conflito com o ordenamento constitucional e/ou infraconstitucional federal e/ou estadual. [...] 6. Representação que se julga improcedente. (TJ-RJ - ADI: 00527701420138190000 RJ 0052770-14.2013.8.19.0000, Relator: DES. FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA, Data de Julgamento: 05/05/2014, OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 10/06/2014)

Portanto, consoante fundamentam as decisões acima transcritas, em que pese a matéria de educação e ensino esteja presente no art. 24 da CF/88 como competência legislativa concorrente da União, do Distrito Federal e dos Estados, os Municípios, no estrito interesse local, podem legislar sobre o tema, atentando para não extrapolar o âmbito local e para não entrar em conflito com normas constitucionais ou infraconstitucionais.

2.2 Da iniciativa do processo legislativo

Constata-se estar adequada a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, uma vez que, tratando-se de emenda à Lei Orgânica, exige o artigo 35, § 1º, da LOM que a proposta, se veiculada por Vereador, seja subscrita por 1/3 dos membros da Câmara Municipal, requisito devidamente observado, pois há 8 assinaturas ao final da justificativa.

2.3 Do conteúdo do projeto

Da leitura do Projeto de Emenda à Lei Orgânica nº 005/2021, verifica-se que busca incluir um dispositivo na LOM de Guaíba com inspiração na Lei Maria da Penha, de forma a dispor sobre a garantia dos direitos fundamentais das mulheres – à semelhança do art. 2º da Lei nº 11.340/2006 – no âmbito local e, especificamente, tratar da inserção de conteúdos mínimos de direitos humanos, equidade de gênero e raça ou etnia e do problema da violência doméstica e familiar contra a mulher no sistema de ensino, tal como já dispõe o art. 8º, inciso IX, da Lei Maria da Penha.

Com efeito, a Lei nº 11.340/2006 é clara ao determinar a obrigação já aplicável a todos os entes federados no sentido de que a política pública que objetiva coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes “o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”, a demonstrar, portanto, que o tema já é tratado pela legislação federal e que, pela emenda à Lei Orgânica, será feita uma complementação da obrigação já existente.

Essa complementação busca, além de reproduzir a mesma regra prevista na Lei Maria da Penha, dispor sobre os objetivos dessa política pública de ensino, expostos no § 2º do artigo que se pretende introduzir na LOM, construídos para o fim de levar ao sistema de ensino municipal o conhecimento sobre os direitos humanos das mulheres, seja pela divulgação dos mecanismos de proteção das mulheres, seja pela consciência da repressão criminal existente para os casos de feminicídio.

Assim, entende-se que a proposta é materialmente constitucional por pretender, inclusive expressamente, promover a igualdade de gênero na sociedade, estando de acordo com o direito fundamental à igualdade material entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I, da CF/88), não havendo vício de iniciativa por ter um caráter de complementação de obrigação já determinada pela legislação federal. Ou seja, na medida em que não se trata de criação de novas atribuições para órgãos públicos ligados ao Poder Executivo (art. 60, II, “d”, da CE/RS), a proposta pode ser veiculada por iniciativa parlamentar, sobretudo por estar sendo regrada na Lei Orgânica Municipal, norma representativa da organização básica municipal e que tem relevância social ao disciplinar conteúdos sensíveis à ordem econômica e social.

Portanto, considerando a competência fundada no interesse local (art. 30, I, da CF/88), a regular iniciativa do processo legislativo (art. 35, § 1º, da LOM) e a compatibilidade material com a CF/88 e com a Lei Maria da Penha, nada obsta a tramitação do projeto, que deverá seguir o rito do art. 36 da LOM e ser promulgado pela Mesa (art. 37 da LOM).

3. Conclusão

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 005/2021, por inexistirem vícios formais ou materiais que impeçam a sua deliberação em Plenário, desde que atendidos os requisitos procedimentais previstos na Lei Orgânica para a deliberação da proposta.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 23 de agosto de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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23/08/2021 16:05:34
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