Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 124/2021
PROPONENTE : Ver.ª Leticia Maidana
     
PARECER : Nº 254/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o Programa Maria Sem Medo nas Escolas da Rede Pública Municipal"

1. Relatório

A Vereadora Leticia Maidana apresentou o Projeto de Lei nº 124/2021 à Câmara Municipal, visando instituir o Programa Maria Sem Medo nas Escolas da Rede Pública Municipal. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende instituir programa sob a responsabilidade do Poder Executivo Municipal, no sentido do desenvolvimento de ações de ensino de noções básicas sobre a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) nas escolas da rede pública municipal. Apesar do mérito, a matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, por dispor sobre programa a ser executado nas instituições de ensino da educação básica – ou seja, em órgãos ligados estruturalmente ao Poder Executivo –, envolvendo diversas obrigações a serem executadas sob a responsabilidade última do Prefeito.

O Projeto de Lei nº 124/2021, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer a execução de programa sob a responsabilidade do Poder Executivo para o ensino de noções sobre a Lei nº 11.340/06 nas escolas da rede pública municipal, por tratar-se de matéria de competência privativa do Prefeito, na seara de sua discricionariedade. Aliás, veja-se a jurisprudência:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE PIRAPÓ. LEI MUNICIPAL. INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO. INCLUSÃO DE NOÇÕES BÁSICAS DA LEI MARIA DA PENHA NA GRADE CURRICULAR DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO. INCONSTICIONALIDADE POR VÍCIO DE ORIGEM. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUMENTO DE DESPESAS PÚBLICAS. VEDAÇÃO. PRECEDENTES. 1. Caracterizada violação ao princípio da separação dos poderes (art. 10, CE/89), na hipótese em que lei de iniciativa parlamentar é editada para tornar obrigatório, nas escolas públicas do Município de Pirapó, o ensino de noções básicas sobre a Lei Federal 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), havendo, inclusive, previsão de que a execução da norma ficará a cargo da Secretaria Municipal de Educação. 2. A lei impugnada versa sobre matéria eminentemente administrativa, e interfere sensivelmente na organização e no funcionamento de órgãos da administração direta do Poder Executivo municipal, motivo pelo qual a iniciativa para deflagrar processo legislativo acerca dessa temática compete ao prefeito, nos termos do 8º, caput, 10, 60, inciso II, alínea “d”, 82, incisos III e VII, todos da Constituição Estadual de 1989. Precedentes deste Órgão Especial. 3. A inclusão da referida disciplina na grade curricular da rede municipal de ensino resulta em aumento de despesas públicas ao Poder Executivo, que tem assumido os custos do oferecimento de cursos de capacitação para os professores já contratados, sem prejuízo da eventual contratação de novos profissionais para ministrarem a disciplina, circunstância que implica violação dos arts. 8°, 61, I, 149, I, II e III, 154, I e II, todos da CE/89. Jurisprudência deste Tribunal. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70081273146, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em: 11-09-2019)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE CANOAS. LEI Nº 6.399/2020. PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PELA REDE MUNICIPAL DE ENSINO. VÍCIO DE INICIATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 1. Lei nº 6.399/2020, do Município de Canoas, que estabelece diretrizes de valorização de mulheres e meninas e ações para a prevenção e o combate à violência contra a mulher pela rede municipal de ensino. 2. Lei de origem parlamentar que interfere no funcionamento e organização da Administração Municipal, logo a iniciativa para apresentar a proposição legislativa compete ao chefe do Poder Executivo Municipal. 3. Padece de inconstitucionalidade formal a Lei Municipal, de iniciativa do Poder Legislativo, dispondo sobre matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Afronta ao disposto nos artigos 8º, “caput”, 10, 60, inciso II, alínea “d”, 82, incisos III e VII, todos da CE/89. [...] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE. UNÂNIME. (ADI Nº 70084788413, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em: 16-04-2021)

O Projeto de Lei nº 124/2021 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 124/2021 contém vício de iniciativa, por dispor sobre um programa que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e do artigo 119, II, da Lei Orgânica.

Por fim, destaca-se que a Lei Maria da Penha já prevê, em seu art. 8º, inciso IX, que uma das diretrizes da política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher é “o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.Nesses termos, por já constituir obrigação e diretriz das políticas públicas preventivas na seara dos direitos humanos das mulheres, de responsabilidade de todos os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), é possível a atividade fiscalizatória (requerimentos) para a cobrança e informações sobre a implementação dessa medida nas escolas da rede municipal.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe – PL nº 124/2021, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como por violação ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Destaca-se que a Lei Maria da Penha já prevê, em seu art. 8º, inciso IX, que uma das diretrizes da política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher é “o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.Nesses termos, por já constituir obrigação e diretriz das políticas públicas preventivas na seara dos direitos humanos das mulheres, de responsabilidade de todos os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), é possível a atividade fiscalizatória (requerimentos) para a cobrança e informações sobre a implementação dessa medida nas escolas da rede municipal.

Guaíba, 12 de agosto de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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12/08/2021 12:28:58
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