PARECER JURÍDICO |
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"Suspende a execução das ordens de despejo, desocupação ou remoção forçada de imóveis de propriedade do Município de Guaíba até que sejam cessados os efeitos do Decreto Municipal n° 37/2020, de 21 de março de 2020, que decreta Estado de Calamidade Pública" 1. RelatórioO Vereador Miguel Crizel apresentou o Projeto de Lei nº 100/2021 à Câmara Municipal, que suspende a execução das ordens de despejo, desocupação ou remoção forçada de imóveis de propriedade do Município de Guaíba até que sejam cessados os efeitos do Decreto Municipal nº 37, de 21 de março de 2020, que decreta Estado de Calamidade Pública devido à pandemia de COVID-19. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. 2. FUNÇÕES DA PROCURADORIA JURÍDICAA Procuradoria Jurídica da Câmara de Guaíba, órgão consultivo com previsão no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18, exerce as funções de assessoramento jurídico e de orientação da Mesa Diretora, da Presidência da Casa e dos setores legislativos, através da emissão de pareceres escritos e verbais, bem como de opiniões fundamentadas objetivando a tomada de decisões, por meio de reuniões, de manifestações escritas e de aconselhamentos. Trata-se de órgão público que, embora não detenha competência decisória, orienta juridicamente o gestor público e os setores legislativos, sem caráter vinculante. Os pareceres jurídicos são atos resultantes do exercício da função consultiva desta Procuradoria Jurídica, no sentido de alertar para eventuais inconformidades que possam estar presentes. Conforme leciona Hely Lopes Meirelles na obra Direito Administrativo Brasileiro, 41ª ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2015, p. 204, “O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva.” Desse modo, a função consultiva desempenhada por esta Procuradoria com base no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18 – que dispõe sobre a organização administrativa da Câmara Municipal de Guaíba – não é vinculante, motivo pelo qual é possível, se for o caso, que os agentes políticos formem suas próprias convicções em discordância com as opiniões manifestadas por meio do parecer jurídico. 3. MÉRITOO artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A lei que se pretende instituir se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque o Projeto de Lei nº 100/2021, além de veicular tema de competência material comum (“combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos” – art. 23, X, da CF/88), define uma política de proteção do direito à moradia das famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade, para o que o Município também é competente, tendo em vista a sua obrigação de efetivação dos direitos sociais e da dignidade humana (arts. 1º, III, e 6º da CF/88). Além disso, como se demonstrará à frente, a competência legislativa municipal também se extrai de decisão judicial proferida pelo STF na APDF nº 828, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:
No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:
Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por Vereador sobre a matéria tratada, já que, com base nos fundamentos acima expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva, sobretudo porque a medida não interfere na organização administrativa do Poder Executivo e também não consiste em criação de novas atribuições para órgãos da Administração Pública. Quanto à matéria de fundo, entende-se inexistir qualquer óbice de natureza jurídica, tendo em vista, em especial, os efeitos da medida cautelar deferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso na ADPF nº 828, proposta pelo PSOL e que está em tramitação no Supremo Tribunal Federal. A ação judicial foi proposta “contra atos do Poder Público relativos a desocupações, despejos e reintegrações de posse, a fim de evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais relativos ao direito social à saúde (art. 6º; art. 23, inciso II; art. 24, inciso XII; art. 194; art. 196; art. 197; art. 198; art. 199 e art. 200), o direito fundamental à vida (art. 5º, caput; art. 227 e art. 230), o fundamento da República Federativa do Brasil de dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III); o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade justa e solidária (art. 3º, inciso I), e o direito fundamental à moradia (art. 6º e 23, inc. IX)”. Seu objetivo é impedir a execução de medidas de despejo, desocupação e remoção de famílias de áreas ocupadas indevidamente, por sua desproporcionalidade diante dos gravíssimos contextos de vulnerabilidades provocados pela pandemia, que podem, inclusive, agravar os riscos epidemiológicos e a situação da saúde no país. Em síntese, a medida cautelar foi deferida nos seguintes termos:
Ou seja, o pedido foi deferido parcialmente, “[...] a fim de evitar que remoções e desocupações coletivas violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas.” Uma das razões é no sentido de que a recomendação sanitária é de que, para achatar a curva de transmissibilidade da COVID-19, as pessoas permaneçam em casa o maior tempo possível, de modo que a residência passou a ser um escudo importante contra o vírus, pelo que a garantia do direito à moradia se transforma em instrumento de promoção da saúde. Nessa perspectiva, alguns Estados editaram leis locais suspendendo ações e/ou o cumprimento de mandados de reintegração de posse e imissão de posse, despejos e remoções judiciais e extrajudiciais com vistas a evitar o contágio da COVID-19, tratando-se, a rigor, de medidas temporárias e direcionadas a contribuir para o fim da pandemia no país. A título de exemplo, citam-se leis dos Estados do Rio de Janeiro (Lei Estadual nº 9.020/2020), Pará (Lei Estadual nº 9.212/2021), Amazonas (Lei Estadual nº 5.429/2021), Paraíba (Lei Estadual nº 11.676/2020), além do Distrito Federal (Lei Distrital nº 6.657/2020). Tais normas jurídicas locais, sobretudo se mais favoráveis do que a medida cautelar deferida na ADPF nº 828, devem prevalecer no caso concreto, como bem expôs o Min. Luís Roberto Barroso em sua decisão, ao orientar que leis locais mais favoráveis à tutela do direito à moradia possam ser editadas e, nesse caso, ser respeitadas pela Administração Pública. Isso indica que, para além da medida cautelar deferida na ADPF nº 828, os entes federados podem editar leis disciplinando a questão inclusive de modo mais favorável. Comparando-se a decisão cautelar com o Projeto de Lei nº 100/2021, entende-se que este é mais favorável à tutela do direito à moradia, especialmente por duas justificativas. A primeira é pelo fato de que, enquanto a medida cautelar faz a distinção entre as ocupações anteriores e as posteriores a 20/03/2020 (data do Decreto Legislativo nº 006/2020), possibilitando condicionalmente a retomada da posse pelo Poder Público no caso de ocupações posteriores a essa data, o Projeto de Lei nº 100/2021 não define qualquer marco temporal que determine eventuais possibilidades de recuperação da posse, visto que suspende todas as execuções de medidas de desocupação, exceto se for oferecida nova habitação em condições adequadas de moradia. A segunda razão é porque a medida cautelar estabelece o prazo de 6 meses de suspensão, ao passo que o Projeto de Lei nº 100/2021, em seu art. 2º, determina sua vigência de forma vinculada aos efeitos do Decreto Municipal nº 037/2020, que acompanhará todo o período de calamidade pública da pandemia, isto é, por um período certamente superior ao da suspensão determinada judicialmente. Por esses motivos, compreende-se que a proposição tem conteúdo mais favorável à tutela do direito à moradia das famílias vulneráveis em comparação à medida cautelar deferida na ADPF nº 828, pelo que, nos termos da própria decisão cautelar, deve prevalecer devido ao seu maior potencial de salvaguarda dos direitos fundamentais das famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade. Por fim, é importante destacar, sinteticamente, que em matéria de interpretação dos direitos humanos incide o denominado princípio pro homine ou pro persona, no sentido de que deve dar-se primazia à aplicação da norma que revele maior grau de proteção e seja mais favorável à defesa do ser humano, como bem expõe o Ministro Celso de Mello:
Portanto, à vista das justificativas acima expostas e tendo como base hermenêutica o princípio pro homine ou pro persona, considera-se viável, sob o ponto de vista jurídico, o Projeto de Lei nº 100/2021, por conferir proteção a preceitos fundamentais da CF/88 (vida, saúde, moradia, dignidade humana, sociedade justa e solidária) em extensão e tempo superiores à que, comparativamente, é conferida pela cautelar da ADPF nº 828, a indicar sua prevalência na defesa das famílias em contextos de vulnerabilidades. 4. ConclusãoDiante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela legalidade e regular tramitação do Projeto de Lei nº 100/2021, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário. Recomenda-se apenas a correção da cláusula de vigência (art. 3º) para constar que a lei entra em vigor na data da sua publicação, pois esta é condição de eficácia das normas jurídicas. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 1º de julho de 2021. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 01/07/2021 18:40:57 |
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Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 01/07/2021 ás 17:47:10. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação d63e82440e7b43ecb4657bc4851f0917.
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