Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 104/2021
PROPONENTE : Ver. Cristiano Eleu
     
PARECER : Nº 206/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Declara como bem integrante do Patrimônio cultural imaterial do município de Guaíba/RS e considera como atividade tradicionalista a “Prova de Laço” e dá outras providências"

1. Relatório

O Vereador Cristiano Eleu apresentou o Projeto de Lei nº 104/2021 à Câmara Municipal, objetivando declarar como bem integrante do patrimônio cultural imaterial municipal e considerar como atividade tradicionalista a “Prova de Laço”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma inscrita no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido –, no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como o instituto do controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Na Constituição Federal de 1988, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo. Na Lei Orgânica Municipal, tais restrições são repetidas e detalhadas nos artigos 52 e 119, sendo de observância obrigatória na análise jurídica das proposições.

Nesses termos, para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS:

Art. 60. São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Verifica-se estar adequada a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, uma vez que o projeto de lei apresentado propõe apenas tornar patrimônio cultural imaterial municipal a “Prova do Laço”, não havendo qualquer limitação à propositura de projeto de lei por vereador versando sobre essa matéria.

Quanto à competência, não há qualquer óbice à proposta. Conforme dispõe o artigo 30, I, da Constituição Federal de 1988, “Compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local.” No mesmo sentido, o artigo 6º, I, da Lei Orgânica do Município de Guaíba refere que “Ao Município compete prover a tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe privativamente, dentre outras, as seguintes atribuições: legislar sobre assunto de interesse local.”

O Projeto de Lei nº 104/2021 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, na medida em que torna patrimônio cultural imaterial, no âmbito estritamente local, a “Prova do Laço”, com vistas a fomentar a preservação do patrimônio cultural da localidade, para o que o Município é materialmente competente, nos termos do art. 23, III, da CF/88.

Quanto à matéria, o art. 215 da Constituição Federal refere que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” Do mesmo modo, o art. 220 da CE/RS estabelece: “O Estado estimulará a cultura em suas múltiplas manifestações, garantindo o pleno e efetivo exercício dos respectivos direitos bem como o acesso a suas fontes em nível nacional e regional, apoiando e incentivando a produção, a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Por outro lado, é necessário destacar que a CF/88 e a CE/RS estabelecem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incorporando, em seu conteúdo, o dever de proteção do bem-estar dos animais. Consoante o art. 225, caput, da CF/88, “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” O § 1º, detalhando os meios de garantir a proteção ambiental, obriga o Poder Público a “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (inciso VII). Salienta-se, ainda, o disposto no § 7º do art. 225 da CF/88, introduzido pela EC nº 96/2017:

Art. 225 [...]

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.

Do mesmo modo, o artigo 251, caput, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul prevê: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo a todos exigir do Poder Público a adoção de medidas nesse sentido.” Entre as medidas de proteção ao meio ambiente, o § 1º, VII, prevê: “proteger a flora, a fauna e a paisagem natural, especialmente os cursos d’água, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica e paisagística, provoquem extinção de espécie ou submetam os animais a crueldade”.

Ou seja, a rigor, os parágrafos citados dos textos constitucionais tutelam o valor da vida animal contra atos cruéis que afrontem os seus interesses enquanto seres sencientes, isto é, indivíduos capazes de sentir impulsos de sentimentos de forma consciente. Nessa linha, a jurisprudência do STF vem avançando cada vez mais no sentido da proteção da vida animal como valor constitucional autônomo, destacando-se, por exemplo, as decisões que interditam manifestações culturais que impliquem crueldade contra animais: RE nº 153.531 e ADIs nº 2.514, 3.776, 1.856 e 4.983.

No caso das vaquejadas (ADI nº 4.983), o Min. Luís Roberto Barroso desenvolveu sólidas considerações quanto à ética animal e ao dever constitucional de proteção dos interesses dos seres sencientes, sendo pertinente a transcrição de alguns trechos:

34. Embora a norma constitucional presente no art. 225, caput, tenha feição nitidamente antropocêntrica, a Constituição a equilibra com o biocentrismo por meio de seus parágrafos e incisos. É por essa razão que é possível afirmar que o constituinte não endossou um antropocentrismo radical, mas sim optou por uma versão moderada, em sintonia com a intensidade valorativa conferida ao meio ambiente pela maioria das sociedades contemporâneas. Além disso, o fato de a Constituição Federal de 1988 ser a primeira entre as constituições brasileiras a se importar com a proteção da fauna e da flora é bastante representativo dessa opção antropocêntrica moderada feita pelo constituinte.

35. A Constituição também avançou no campo da ética animal, sendo uma das poucas no mundo a vedar expressamente a crueldade contra eles. Esse inegável avanço na tutela dos animais está previsto no art. 225, § 1º, VII, onde a Constituição assevera que é dever do Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade. Entretanto, a maior parte da doutrina e a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal têm interpretado essa tutela constitucional dos animais contra a crueldade como dependente do direito ao meio ambiente, em razão da sua inserção no art. 225. Penso, no entanto, que essa interpretação não é a melhor pelas razões que se seguem.

36. Primeiramente, essa cláusula de vedação de práticas que submetam animais a crueldade foi inserida na Constituição brasileira a partir da discussão, ocorrida na assembleia constituinte, sobre práticas cruéis contra animais, especialmente na “farra do boi”, e não como mais uma medida voltada para a garantia de um meio-ambiente ecologicamente equilibrado. Em segundo lugar, caso o propósito do constituinte fosse ecológico, não seria preciso incluir a vedação de práticas de crueldade contra animais na redação do art. 225, § 1º, VII, já que, no mesmo dispositivo, há o dever de “proteger a fauna”. Por fim, também não foi por um propósito preservacionista que o constituinte inseriu tal cláusula, pois também não teria sentido incluí-la já havendo, no mesmo dispositivo, a cláusula que proíbe práticas que “provoquem a extinção das espécies”.

37. Portanto, a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilibro do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.

Portanto, desde que atendidos parâmetros adequados de proteção animal e que não se configurem práticas de crueldade, não há obstáculos materiais ou formais evidentes que impeçam a tramitação do Projeto de Lei nº 104/2021, sobretudo porque, de acordo com o projeto, reafirma-se a obrigatoriedade de observância das disposições previstas na Lei Federal nº 10.519, de 17 de julho de 2002, que definem as condições para assegurar o bem-estar dos animais envolvidos nas práticas culturais, tais como na prova de laço.

No entanto, como está em vigor, no Município de Guaíba, a Lei Municipal nº 1.433/98, que, no art. 20, incumbe ao Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural a tarefa de executar as medidas relacionadas à promoção do patrimônio cultural local, entende-se que, como condição da plena viabilidade jurídica desta proposição, deve haver deliberação prévia do referido conselho acerca do seu mérito, com emissão de parecer em reunião, conforme disciplina o inciso V do art. 3º da Lei Municipal nº 694/84.

3. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta no Projeto de Lei nº 104/2021, por inexistirem vícios constitucionais de natureza material ou formal que impeçam a sua tramitação regimental. No entanto, a total viabilidade jurídica fica condicionada à prévia deliberação do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural quanto ao mérito da proposição, com emissão de parecer em reunião, na forma disciplinada no inciso V do art. 3º da Lei Municipal nº 694/84, podendo tal medida ser providenciada durante a tramitação do projeto, por iniciativa das comissões permanentes.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 30 de junho de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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30/06/2021 15:03:26
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