Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 088/2021
PROPONENTE : Ver.ª Carla Vargas
     
PARECER : Nº 180/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre prioridade de vaga na educação infantil para criança filha ou filho de mulher vítima de violência doméstica, de natureza física, sexual, moral, psicológica e patrimonial, no município de Guaíba"

1. Relatório:

A Vereadora Carla Vargas (PTB) apresentou o Projeto de Lei nº 088/2021 à Câmara Municipal, o qual “Dispõe sobre prioridade de vaga na educação infantil para criança filha ou filho de mulher vítima de violência doméstica, de natureza física, sexual, moral, psicológica e patrimonial, no município de Guaíba”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Vereadores.

2. MÉRITO:

Preliminarmente, a matéria de fundo insere-se na competência local, não havendo qualquer óbice à proposta. A proposição encontra respaldo no que diz respeito à autonomia e à competência legislativa do Município, insculpidas no artigo 18 da Constituição Federal de 1988, que garante a autonomia a este ente, bem como no artigo 30 da CF/88, que garante a autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios. O referido artigo 30, I, da Constituição Federal de 1988, dispõe que:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

(...)

A instituição de prioridade de vagas em escolas municipais é matéria de interesse local, verificando-se que a proposta legislativa ora em análise encontra-se ao abrigo do comando constitucional que estabelece a competência legislativa ao Município, não havendo, portanto, sob esse prisma, óbice material à regular tramitação do Projeto de Lei n.º 088/2021.

No que diz respeito à iniciativa legislativa para deflagrar o processo legislativo, trata-se de matéria complexa, havendo correntes distintas na jurisprudência quanto à criação de programas municipais através de projetos de lei de iniciativa parlamentar.

Ademais, quando do julgamento do referido RE 290.549 AgR, em 2012, a Primeira Turma do STF entendeu que a criação, por lei de iniciativa parlamentar, de programa municipal a ser desenvolvido em logradouros públicos não invade esfera de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo.

Também o Tribunal de Justiça Carioca em seu acórdão - mantido naquele julgamento do STF - entendera por afastar a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 2º e 3º da Lei municipal nº 2.621/98 com base em uma interpretação sistemática desses dispositivos, sob o fundamento de que eles não se relacionam com a matéria de competência reservada ao Chefe do Poder Executivo. Afirmou ainda o TJRJ que o que ocorreu foi a previsão de um programa social, cuja execução depende de regulamentação a ser, ao seu tempo, implementada.

Cabe trazer à análise da constitucionalidade da presente proposição julgado de 2017 do plenário do Supremo Tribunal Federal em que a Corte assentou inexistir usurpação de iniciativa pela promulgação da Lei 16.285/2013, de Santa Catarina, em disposições que regulam a assistência a vítimas incapacitadas por queimaduras graves:

CONSTITUCIONAL. PROTEÇÃO À SAÚDE E A PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS. LEI 16.285/2013, DE SANTA CATARINA. ASSISTÊNCIA A VÍTIMAS INCAPACITADAS POR QUEIMADURAS GRAVES. ALEGAÇÕES DIVERSAS DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VÍCIOS DE INICIATIVA. INEXISTÊNCIA. OCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIAS MUNICIPAIS (ART. 30, V) E DA UNIÃO, QUANTO À AUTORIDADE PARA EXPEDIR NORMA GERAL (ART. 24, XIV, § 1º). 1. Os artigos 1º, 4º, 6º e 7º da lei impugnada não afrontam a regra, de reprodução federativamente obrigatória, que preserva sob a autoridade do chefe do Poder Executivo local a iniciativa para iniciar leis de criação e/ou extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública (art. 61, § 1º, II, e, da CF). Mera especificação de quais cuidados médicos, dentre aqueles já contemplados nos padrões nacionais de atendimento da rede pública de saúde, devem ser garantidos a determinada classe de pacientes (portadores de sequelas graves causadas por queimaduras). 2. A cláusula de reserva de iniciativa inscrita no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, por sua vez, não tem qualquer pertinência com a legislação objeto de exame, de procedência estadual, aplicando-se tão somente aos territórios federais. Precedentes. 3. Inocorrência, ainda, de violação a preceitos orçamentários, tendo em vista o acréscimo de despesas públicas decorrentes da garantia de assistência médica especializada a vítimas de queimaduras. Conforme reafirmado pelo Plenário Virtual desta Suprema Corte em sede repercussão geral (ARE 878.911, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 10/10/2016): Não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II,\"a\", \"c\" e \"e\", da Constituição Federal). 4. Ao dispor sobre transporte municipal, o art. 8º da Lei nº 16.285/2013 do Estado de Santa Catarina realmente interferiu na autonomia dos entes municipais, pois avançou sobre a administração de um serviço público de interesse local (art. 30, V, da CF). Além disso, o dispositivo criou presunção legal de restrição de mobilidade de vítimas de queimaduras graves, distanciando-se do critério prescrito em normas gerais expedidas pela União dentro de sua competência para legislar sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência (art. 24, XIV, e § 1º, da CF). 5. A norma prevista no art. 9º da Lei estadual 16.285/2013 funciona como cláusula de mero valor expletivo, que apenas conecta uma categoria normativa geral, de pessoas com deficiência, com uma classe especial de destinatários sempre caracterizados por incapacidade laboral a pessoas com sequelas graves incapacitantes decorrentes de queimaduras sem que exista qualquer contraste entre as duas disciplinas. 6. Ação direta parcialmente procedente quanto ao art. 8º da Lei 16.285/2013, do Estado de Santa Catarina. (ADI 5293, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 08/11/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe263 DIVULG 20-11-2017 PUBLIC 21-11-2017).

O próprio Supremo Tribunal Federal já considerou constitucionais leis que não tratavam de questões atinentes à estrutura da administração do Estado previstas nas alíneas a) e f), do inciso II, do § 1º, do artigo 61 da CF/88, apenas regulamentando pequenos aspectos:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL 9164/95. ESCOLA PÚBLICA ESTADUAL. ENSINO DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA. FORMAÇÃO ESPECÍFICA PARA O EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO. LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. INICIATIVA PARLAMENTAR. VÍCIO FORMAL. INOCORRÊNCIA. 1. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Iniciativa. Constituição Federal, artigo 22, XXIV. Competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. 2. Legislação estadual. Magistério. Educação artística. Formação específica. Exigência não contida na Lei Federal 9394/96. Questão afeta à legalidade. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente em parte. (ADI 1399, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2004, DJ 11-062004 PP-00004 EMENT VOL-02155-01 PP-00028 RTJ VOL-00191-03 PP-00815).

Pode-se identificar claramente uma evolução e alteração na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto aos limites da iniciativa parlamentar para legislar sobre políticas públicas, todavia consistindo tópico deveras complexo. Verifica-se que a jurisprudência da Suprema Corte tem revelado possibilidades amplas de formulação de políticas públicas por iniciativa parlamentar, desde que respeitados determinados parâmetros constitucionais.

Tem-se identificado na jurisprudência dos tribunais uma interpretação mais aberta e consentânea com a finalidade das normas constitucionais de competência, as quais têm afirmado, em casos como os colacionados, não encerrar inconstitucionalidade, seja do ponto de vista formal, seja material, desde que a leitura do intérprete das normas constitucionais incidentes à espécie seja a teleológica, ou seja, busque alcançar a sua finalidade, conforme a interpretação de que a vinculação do Legislador à CF/88 impõe que os direitos fundamentais sejam legislativamente desenvolvidos, inclusive através de leis promotoras desses direitos, assim entendidas aquelas que visam criar condições favoráveis ao exercício dos direitos fundamentais[1]. Deste modo, as interpretações do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal passaram, de fato, por uma verdadeira releitura pela jurisprudência.

Da mesma forma, a doutrina especializada leciona que “essa cláusula deve ser interpretada de forma restritiva, por conta de fatores históricos e dogmáticos. Não se pode nela ver uma inconstitucionalidade (por vício de iniciativa) de qualquer projeto de lei proposto pelo Legislativo e que trate sobre políticas públicas. (...) Dessa maneira, é possível defender uma interpretação da alínea e do inciso II do § 1º do art. 61 que seja compatível com a prerrogativa do legislador de formular políticas públicas... desde que não promova o redesenho de órgãos do Executivo.”[2]

É o que considerou o TJRS quando do julgamento da ADI Nº 70076014240, objetivando a retirada do ordenamento jurídico da Lei Municipal nº 3.506, de 26 de agosto de 2005, do Município de São Borja, a qual dispõe sobre a instituição de patrocínio nos uniformes escolares da rede pública de ensino:

... com efeito, na espécie, impossível identificar violação ao princípio da separação de poderes, previsto no art. 10 da Constituição do Estado, mormente não se perdendo de vista que o singelo projeto de patrocínio dos uniformes escolares não importa em alteração da organização das escolas municipais, esta sim incumbência reservada à atividade administrativa do Chefe do Poder Executivo Municipal.

(...)

Em tal contexto, não se afigura inconstitucional, do ponto de vista formal, pois não houve usurpação de competência do Chefe do Poder Executivo Municipal, tanto é assim que, ao fim e ao cabo, é a própria regulamentação da matéria procedida pelo Decreto baixado pelo Prefeito Municipal que regulamentará e disciplinará a utilização e uniformização do vestuário dos alunos da rede pública municipal de ensino de São Borja.

Pode-se identificar julgado do TJSP em que o tribunal declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar que regula a matéria atinente à preferência de matrícula:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Arguição em face da lei 14.451, de 21 de fevereiro de 2020 do Município de Ribeirão Preto que dispõe sobre o direito de preferência na matrícula e na transferência da matrícula dos filhos de mulheres vítimas de violência doméstica nas creches e nas escolas municipais e dá outras providências. Existência de vício de iniciativa, na medida em que a questão tratada pela lei impugnada é exclusiva do Poder Executivo, na pessoa do Prefeito Municipal. Violação ao princípio da separação dos poderes. Inteligência dos arts. 5º e 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual. Lei que dispõe sobre atos de organização, planejamento e gestão administrativa, que são de competência do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. Ação procedente. (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2157148-45.2020.8.26.0000; Relator (a): James Siano; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo; Data do Julgamento: 24/02/2021; Data de Registro: 25/02/2021)

  

Por outro lado, verifica-se jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a constitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar instituindo a preferência de matrícula:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CRIAÇÃO DO PROGRAMA CRECHE SOLIDÁRIA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. DECISÃO RECORRIDA QUE SE AMOLDA À JURISPRUDÊNCIA DO STF. DESPROVIMENTO DO AGRAVO REGIMENTAL. 1. Norma de origem parlamentar que não cria, extingue ou altera órgão da Administração Pública não ofende a regra constitucional de iniciativa privativa do Poder Executivo para dispor sobre essa matéria. Precedentes. 2. Não ofende a separação de poderes a previsão, em lei de iniciativa parlamentar, de encargo inerente ao Poder Público a fim de concretizar direito social previsto na Constituição. Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 1282228 A. GR/RJ, RELATOR: MIN. EDSON FACHIN, 15/12/2020).

Verifica-se que a lei objeto do Acórdão supra do E. STF possui teor praticamente idêntico às previsões do Projeto de Lei ora em análise.

Não obstante, a Lei Federal nº 13.882/2019, que alterou a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), já prevê a prioridade de matrícula para os dependentes, podendo haver a suplementação da referida norma federal no âmbito do Município, nos termos do art. 30, II da CF/88. Assim, pode a proponente prever um percentual para que haja a preferência estabelecida na proposta (vide a Lei nº 5.553/2018, do Município de Volta Redonda, que criou o Programa Creche Solidária, que previu o percentual de até 20%).

Ademais, merece aprimoramento o PL nº 088/2021, estabelecendo a prioridade para os dependentes e não apenas a “filha ou filho”:

 

Art. 9º (...)

7º A mulher em situação de violência doméstica e familiar tem prioridade para matricular seus dependentes em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio, ou transferi-los para essa instituição, mediante a apresentação dos documentos comprobatórios do registro da ocorrência policial ou do processo de violência doméstica e familiar em curso.

Recomendamos que seja previsto, ainda, o caráter sigiloso dos dados da ofendida e de seus dependentes:

Art. 9º (...)

Serão sigilosos os dados da ofendida e de seus dependentes matriculados ou transferidos conforme o disposto no § 7º deste artigo, e o acesso às informações será reservado ao juiz, ao Ministério Público e aos órgãos competentes do poder público.”

Portanto, é constitucional do ponto de vista formal e material a propositura, tendo o E. Supremo Tribunal Federal declarado constitucional a Lei nº 5.553/2018, do Município de Volta Redondo, que criou o Programa Creche Solidário, que tem por objetivo garantir a prioridade de vagas em creches para filhos(as) de mulheres vítimas de violência doméstica “visto que a lei impugnada não implicou qualquer alteração na estrutura ou atribuição dos órgãos do Poder Executivo, limitando-se a concretizar a atuação daquele ente federado no tema tratado, sem criar atribuição estranha às garantias constitucionais de proteção aos direitos sociais à segurança, educação e proteção à maternidade e à infância previsto nos art. 6º, da CRFB, também de competência do ente municipal”.

Por fim, merece ser corrigida a cláusula de vigência, nos termos do que determina o art. 8º da LC 95/98:

Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão.

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006; BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2006.

[2] João Trindade Cavalcante Filho, 2013.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei nº 088/2021, de autoria do Ver.ª Carla Vargas (PTB), havendo jurisprudência do STF assentando a constitucionalidade da propositura legislativa, desde que venha a suplementar a Lei Federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Recomenda-se que seja prevista na propositura a prioridade para os dependentes e norma que garanta a preservação da identidade das pessoas beneficiárias da preferência, tanto da ofendida como dos dependentes matriculados ou transferidos.

 É o parecer.

Guaíba, 10 de junho de 2021.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136

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10/06/2021 17:51:12
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