Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 078/2021
PROPONENTE : Ver. Marcos SJ
     
PARECER : Nº 168/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o Banco Municipal de Materiais de Construção e dá outras providências"

1. Relatório

O Vereador Marcos SJ apresentou o Projeto de Lei nº 078/2021 à Câmara Municipal, visando instituir, no Município de Guaíba, o Banco Municipal de Materiais de Construção. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria pelo Presidente da Câmara para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende instituir política sob a responsabilidade do Poder Executivo Municipal, no sentido da coleta por doação e distribuição de materiais de construção para famílias em situação de vulnerabilidade habitacional. Apesar do mérito, a matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, por dispor sobre política que deve ser implementada pelo Executivo, através de seus órgãos, sob a responsabilidade última do Prefeito.

O Projeto de Lei nº 078/2021, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da CE/RS):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer a execução de programa sob a responsabilidade do Poder Executivo no sentido da distribuição de materiais de construção às famílias vulneráveis, por tratar-se de matéria de competência privativa do Prefeito, na seara de sua discricionariedade. Aliás, veja-se a jurisprudência:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 3.032/2010 DO MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS. CRIAÇÃO DE BANCO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, MÓVEIS E UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra “a” da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal – criação de banco de materiais de construção, móveis, utensílios domésticos no âmbito do Município de Gravataí - e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº 3.032/2010, do Município de Gravataí/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (ADI Nº 70040358459, Órgão Especial, Rel. José Genaro Baroni Borges, 23 de maio de 2011).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 5.021/10, DE MOGI MIRIM, DE INICIATIVA LEGISLATIVA, QUE INSTITUIU O BANCO DE REMÉDIO, COM O OBJETIVO DE FORMAR ESTOQUE ORIUNDO DE DOAÇÕES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS, DEVENDO FUNCIONAR EM LOCAL PRÓPRIO A SER DESIGNADO PELO PODER EXECUTIVO. CRIAÇÃO DE OBRIGAÇÕES PARA A ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. INGERÊNCIA INDEVIDA. PROPOSTA QUE DEVERIA PARTIR DO EXECUTIVO LOCAL. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. OFENSA DIRETA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, BEM COMO AOS ARTIGOS 5O E 47, II E XIV, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. NORMA, ADEMAIS, QUE NÃO INDICA A FONTE DE RECURSOS (TJ-SP - ADI: 02422262220128260000 SP 0242226-22.2012.8.26.0000, RELATOR: LUIS SOARES DE MELLO, DATA DE JULGAMENTO: 10/04/2013, ÓRGÃO ESPECIAL, DATA DE PUBLICAÇÃO: 18/04/2013).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 4.273/2015, DO MUNICÍPIO DE CANGUÇU, QUE INSTITUI O BANCO DE REGISTRO DE DOADORES DE SANGUE. CRIAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. MATÉRIA SOBRE A QUAL COMPETE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LEGISLAR PRIVATIVAMENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE PROCLAMADA. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, lei municipal proposta pelo Poder Legislativo que, ao instituir banco de registro de doadores de sangue, cria atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, porquanto são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 60, inc. II, alínea "d", da Constituição Estadual). Por conseguinte, também resta caracterizada ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes no âmbito municipal, consagrado nos arts. 8º, caput, e 10 da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068415397, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 17/10/2016).

O Projeto de Lei nº 078/2021 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 078/2021 contém vício de iniciativa, por dispor sobre um programa que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS e do artigo 119, II, da Lei Orgânica.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente a política pública.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 078/2021, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como por violação ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Recomenda-se que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com fundamento no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente a política pública.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 1º de junho de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B

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01/06/2021 14:12:34
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