PARECER JURÍDICO |
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"Institui o Dia da Igreja do Evangelho Quadrangular no Município de Guaíba, e dá outras providências" 1. RelatórioO Vereador Juliano Ferreira apresentou o Projeto de Lei nº 080/2021 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, o Dia da Igreja do Evangelho Quadrangular, a ser comemorado, anualmente, em 15 de novembro. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno. 2. MÉRITOO artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
Alexandre de Moraes refere que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)". (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740). O Projeto de Lei nº 080/2021 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, já que institui, no Município de Guaíba, o Dia da Igreja do Evangelho Quadrangular, a ser comemorado, anualmente, em 15 de novembro. A fixação de datas comemorativas em âmbito municipal atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade, incentivando o debate e a reflexão. Consoante tem sido o entendimento desta Procuradoria Jurídica nos pareceres aos Projetos de Lei nº 099/2017, 152/2017, 127/2018, entre outros, tendo a presente proposta buscado estabelecer data comemorativa alusiva a entidade religiosa, importa realizar análise pormenorizada quanto à função orientadora do princípio da laicidade que informa a ordem constitucional da República Federativa do Brasil, questão complexa que envolve a apreciação de princípios constitucionais e de valores metajurídicos. O princípio da laicidade é previsto no artigo 19 da Constituição Federal 1988:
Faz-se necessário amoldar ainda o pluralismo religioso aos ditames democráticos e ao princípio da laicidade, não cabendo a um Estado Democrático de Direito incentivar determinada religião. Nesse sentido, a liberdade de expressão, e mais especificamente a liberdade religiosa, deve ter tratamento distinto no âmbito privado, em que todos são livres para exercerem sua religiosidade como preferirem, e no âmbito público, em que a religião deve ser tratada com completa imparcialidade, sem ofender o pluralismo e o respeito à liberdade de crença e de religião de todos. O Estado, para salvaguardar o pluralismo religioso e a liberdade de religião, tem o dever de garantir que as instituições públicas e as políticas públicas permaneçam neutras, sem dar preferência a nenhuma religião ou culto. Assim, a matéria pretendida a principio não afronta a CF/88, desde que a organização e a promoção dos eventos não se deem por parte da Administração Pública. O princípio da laicidade e neutralidade religiosa e ideológica do Estado pretende garantir o livre-arbítrio às pessoas para optar ou não entre os vários credos ou religiões existentes, ampliando, tanto quanto possível, estas liberdades nos diversos contextos sociais e institucionais, favorecendo o pluralismo de ideias e proibindo condutas tais como: a doutrina forçada, a afirmação positiva de crenças ou a discriminação religiosa e/ou ideológica.[1] Assim, o Estado deve salvaguardar tanto a posição jurídica de preservação do princípio da laicidade quanto a posição jurídica de proteção ao direito de liberdade de crença. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que a defesa do princípio do secularismo consiste em um dos princípios fundamentais dos Estados em respeito aos direitos dos indivíduos, sendo considerada a laicidade necessária para a proteção do Estado Democrático. A criação de datas oficiais que promovam a comemoração de símbolos e/ou entidades religiosas pode ser considerada, nesses termos, contrária aos princípios do secularismo e da laicidade, se ocorresse favorecimento com recursos públicos a tais eventos. Assim, consideramos que, em respeito ao direito fundamental de liberdade de crença e religião, o Estado possui deveres eminentemente negativos, devendo abster-se de incentivar ou mesmo promover, ainda que indiretamente, determinadas religiões. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem compreendeu que a dimensão negativa da liberdade de consciência e de religião não se satisfaz apenas com a simples ausência de símbolos religiosos, mas contempla também as práticas e símbolos que expressam uma crença, uma religião ou o ateísmo, devendo o Estado ter especial atenção e proteção para não expressar uma convicção religiosa. Essa abstenção evita ainda que o Poder Público adentre em eventuais tensões de ordem religiosa. Levando em conta tal dimensão negativa e o dever de não estabelecer preferências ou promoção de convicções religiosas, a jurisprudência de nossos tribunais tem sido no sentido de que nada impede a criação de data comemorativa com esse intuito. Lapidar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo quanto à lei que institui como evento cultural do Município de Suzano o Dia da Bíblia, estabelecendo, ainda, a inexistência de vício de competência ou de iniciativa:
Quanto à instituição de datas comemorativas alusivas a figuras ou símbolos religiosos, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Dia do Evangélico, tendo assentado o entendimento de que não houve afronta ao principio da laicidade. No julgamento da AC 20010110875766 DF pela 4ª Turma Cível, o TJ do Distrito Federal entendeu ser constitucional o feriado associando a ele o exercício regular de direito de culto religioso (art. 5º, VI, da CF/88). Da decisão extrai-se o seguinte ponto digno de nota, sublinhando ainda que o ordenamento jurídico brasileiro admite inclusive a instituição de feriados religiosos:
Identificaram-se diversos casos em que o Ministério Público ingressou com ação civil pública pelo fato de o Poder Público ter participado da organização de eventos de cunho religioso instituídos por lei, como, por exemplo, Apelação Cível 0141339-06.2007.8.26.0000 e Ação Civil Pública nº 533.01.2011.011832-9 (ambos na Justiça Estadual de SP), também por ferirem o disposto no art. 19, inciso I, da CF/88. O Conselho Nacional do Ministério Publico produziu importante documento intitulado “Em defesa do Estado Laico – Prática Processual”, de 2014[2], que traz ações civis públicas, réplicas, razões e contrarrazões de recursos e, inclusive, representação para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, todas elas com um traço em comum: a defesa da laicidade do Estado e a busca pela garantia do direito de crença e de não crença. Contudo, em relação ao registro da data no calendário oficial de eventos, ocorre violação à reserva de iniciativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo. Isso porque o calendário oficial de eventos municipais é instituído por meio de lei municipal de iniciativa do Chefe do Executivo, por se tratar de matéria atinente à organização administrativa, nos exatos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, aplicável por simetria aos Estados e Municípios, em virtude de sua natureza de norma constitucional de reprodução obrigatória. No mesmo sentido, o artigo 52, VI, da Lei Orgânica Municipal refere competir privativamente ao Prefeito “dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei.” Portanto, tratando-se de matéria relativa à organização administrativa do Município de Guaíba, que despende recursos, pessoal e força de trabalho para a realização de eventos, convém esclarecer que a iniciativa de projeto de lei determinando a inclusão de certa celebração no calendário oficial de eventos é do Chefe do Executivo, embora, nesse caso em específico, haja vedação constitucional à subvenção do evento pelo Município. Nada impede, entretanto, iniciativa parlamentar no sentido de instituir a celebração em si, para que seja enaltecida pelos particulares, pública ou reservadamente. Nesse sentido, destaca-se o posicionamento da jurisprudência:
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 1.043, de 9 de outubro de 2012, do Município de Bertioga. Norma que institui a 'Semana Cultural do Artista Especial' e dá outras providências. Ato normativo que não se limita à fixação de mera data comemorativa, mas envolve também atos de gestão administrativa. Ocorrência de vício de iniciativa. Violação ao princípio da separação dos poderes. Inconstitucionalidade da lei municipal. Procedência da Ação (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0076081-39.2013.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, m. v., Rel. Des. Kioitsi Chicuta, em 21/8/13). Para tornar viável o PL nº 080/2021, que atende ao interesse local e promove o reconhecimento de direitos relevantes, como a cultura (artigo 215, CF) e a liberdade religiosa (artigo 5º, VI, CF), sugere-se a retirada do parágrafo único do art. 1º, devido à sua inconstitucionalidade formal e material. [1] Jónatas Machado (2013, p. 137) afirma que, a partir disso e dos princípios subjacentes ao Estado Constitucional, não se deduz uma absoluta neutralidade religiosa e nem um dever de igualdade de tratamento de doutrinas, ritos ou símbolos. [2] Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/ESTADO_LAICO_Volume_2__web.PDF. Acesso em: 26 maio 2021. 3. ConclusãoDiante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 080/21, pela caracterização de inconstitucionalidade formal e material do parágrafo único do art. 1º (arts. 19, I, e 61, § 1º, da CF/88; art. 60, II, “d”, e art. 82, VII, da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, inciso II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a apresentação de substitutivo retirando o parágrafo único do art. 1º. Por fim, registra-se, novamente, que a legalidade da data comemorativa fica condicionada à ausência de subvenção de quaisquer atos pelo Poder Público ou mesmo ordem para que os eventos festivos sejam realizados ou subsidiados pelo Município, considerando a vedação do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 26 de maio de 2021. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B Documento Assinado Digitalmente no padrão ICP-Brasil por:![]() 26/05/2021 13:35:52 |
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Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 26/05/2021 ás 13:35:16. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação f0c72926466000b6e5360a65532a65f4.
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