Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 067/2021
PROPONENTE : Ver.ª Carla Vargas
     
PARECER : Nº 135/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui, para os doadores de sangue do Município de Guaíba, meia-entrada em eventos culturais, esportivos e de lazer, realizados em locais públicos; e dá outras providências"

1. Relatório:

O Projeto de Lei nº 067/2021, de autoria da Vereadora Carla Vargas (PTB), o qual “Institui, para os doadores de sangue do Município de Guaíba, meia-entrada em eventos culturais, esportivos e de lazer, realizados em locais públicos; e dá outras providências”, foi encaminhado a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade, à competência e ao caráter pessoal das proposições.

2. MÉRITO:

De fato, a norma inscrita no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido –, no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como o instituto do controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

 2.1. COMPETÊNCIA

Dispõe o artigo 30 da Constituição Federal, prevendo a faculdade normativa dos Municípios, através da capacidade de editar leis locais próprias ou legislação suplementar às leis estaduais e federais:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

A doutrina de Alexandre de Moraes leciona que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)". (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740).

Verifica-se que não existe norma federal a respeito de concessão de meia-entrada a doadores de sangue para ingresso em espetáculos teatrais e musicais, exposições de arte, exibições cinematográficas e demais manifestações culturais e/ou esportivas.

Há controvérsia quanto à competência do Município para legislar sobre a matéria objeto do PL nº 067/2021. Verifica-se haver jurisprudência que considera que, ao estabelecer a meia-entrada para doadores de medula óssea, a proposição trata de direito econômico, matéria de competência legislativa concorrente entre a União e os Estados, nos termos do art. 24, I da CRFB/1988, verbis:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; (...)

§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Lei 7.737/2004 do Estado do Espírito Santo. Garantia de meia-entrada aos doadores regulares de sangue. Acesso a locais públicos de cultura, esporte e lazer. Competência concorrente entre a União, Estados membros e o Distrito Federal para legislar sobre direito econômico. [ADI 3.512, rel. min. Eros Grau, j. 15-2-2006, P, DJ de 23-6-2006.]

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.844/92, DO ESTADO DE SÃO PAULO. MEIA-ENTRADA ASSEGURADA AOS ESTUDANTES REGULARMENTE MATRICULADOS EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO. INGRESSO EM CASAS DE DIVERSÃO, ESPORTE, CULTURA E LAZER. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E O DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO ECONÔMICO. CONSTITUCIONALIDADE. (...). ADI 1950 / SP - SÃO PAULO. Relator(a): Min. EROS GRAU. Julgamento: 03/11/2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação 02/06/2006.

Por outro lado, mais recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou constitucional Lei Municipal nº 7.900/2017 de Santo Antônio da Patrulha com idêntico teor, reconhecendo haver competência concorrente entre a União, Estados e Municípios para legislar sobre a matéria:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 7.900/2017, DO MUNICÍPIO DE SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA. INSTITUIÇÃO DE MEIA-ENTRADA EM EVENTOS CULTURAIS, ESPORTIVOS E DE LAZER, REALIZADOS EM LOCAIS PÚBLICOS, AOS DOADORES DE SANGUE. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E MUNICÍPIOS PARA LEGISLAR SOBRE A MATÉRIA, A QUAL NÃO ESTÁ RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS. IMPROCEDÊNCIA. O ato normativo municipal objetiva fomentar as doações de sangue naquela localidade, buscando dar concretude ao direito à vida, assegurado a todas pela Constituição. O Município possui competência para legislar sobre a matéria, inocorrendo, ademais, qualquer interferência nas prerrogativas reservadas ao Chefe do Poder Executivo, de sorte que não há falar em vícios de inconstitucionalidade. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. UNÂNIME.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70079153615, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em: 27-05-2019)

O acórdão é deveras elucidador quanto à efetiva competência municipal para a propositura legislativa em questão com base no interesse predominante do Município, essencialmente pela razão de que se pretendeu instituir a meia-entrada apenas para eventos realizados em locais públicos no âmbito da localidade. Na lição lapidar de Hely Lopes Meirelles:

“Peculiar interesse não é interesse exclusivo do Município; não é interesse privativo da localidade; não é interesse único dos munícipes. Se se exigisse essa exclusividade, essa privatividade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o âmbito da administração local, aniquilando-se a autonomia municipal que o não seja reflexamente da União e do Estado-membro, como também não há interesse regional ou nacional, que não ressoe nos Municípios, como partes integrantes da Federação brasileira através dos Estado a que pertencem. O que define e caracteriza o peculiar interesse, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o Estado ou a União”. (in Direito Municipal Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 76)

Assim, criar formas de fomentar as doações de sangue em âmbito municipal diz respeito, com base no conceito antes delineado, a matéria de interesse local, em que se busca dar concretude ao direito à vida, assegurado a todos pela Constituição. Ademais, a lei municipal em análise estabeleceu o pagamento de meia-entrada aos doadores de sangue apenas para eventos realizados em locais públicos, escolhendo, acertadamente, o meio menos rigoroso para alcançar o fim almejado.

 2.2. INICIATIVA

Do ponto de vista da iniciativa para a deflagração do processo legislativo – sob o aspecto da inconstitucionalidade formal subjetiva, nada impede a iniciativa da matéria através de iniciativa parlamentar, versando sobre matéria que não é de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo (art. 61 da CRFB/1988 e artigo 60, II, da Constituição do Estado).

O TJRS, no mesmo acórdão no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70079153615, considerou não se tratar de matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, “limitando-se a instituir um instrumento capaz de incentivar as doações de sangue regulares naquele município, como forma de manter os estoques de sangue nos respectivos bancos, propiciando-se, assim, o atendimento à população”.

 2.3. CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL

Sob o prisma da constitucionalidade material, deve-se analisar a compatibilidade entre o conteúdo da propositura legislativa e as regras e princípios estabelecidos na Constituição Federal e/ou na Constituição Estadual, verificando se o conteúdo do ato normativo proposto está em consonância com tais regras e princípios constitucionais.

A Constituição Federal dispõe sobre a matéria em seu artigo 199, § 4º “A Lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, o processamento e a transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.

Do ponto de vista infraconstitucional, a coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, são tratados na Lei nº 10.205/2001, havendo, segundo o texto legal, vedação a comercialização, mas admitindo o estímulo à coleta de sangue:

Art. 14. A Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

(…)

II- utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social.

Ressalte-se que no julgamento da ADI 3512, o STF julgou a Lei, de iniciativa parlamentar, CONSTITUCIONAL ponderando o Ministro Relator Eros Grau que “a lei atacada é apenas uma tentativa de incentivar as pessoas a doar sangue e considerou constitucionais todos os seus dispositivos. Ele afastou o argumento apresentado pelo governador de que a concessão de meia-entrada seria uma remuneração ao doador de sangue, o que seria proibido pela Constituição”.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.737/2004, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. GARANTIA DE MEIA-ENTRADA AOS DOADORES REGULARES DE SANGUE. ACESSO A LOCAIS PÚBLICOS DE CULTURA ESPORTE E LAZER. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E O DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO ECONÔMICO. CONTROLE DAS DOAÇÕES DE SANGUE E COMPROVANTE DA REGULARIDADE. SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE. CONSTITUCIONALIDADE. LIVRE INICIATIVA E ORDEM ECONÔMICA. MERCADO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA. ARTIGOS 1º, 3º, 170 E 199, § 4º DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário. 2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. 4. A Constituição do Brasil em seu artigo 199, § 4º, veda todo tipo de comercialização de sangue, entretanto estabelece que a lei infraconstitucional disporá sobre as condições e requisitos que facilitem a coleta de sangue. 5. O ato normativo estadual não determina recompensa financeira à doação ou estimula a comercialização de sangue. 6. Na composição entre o princípio da livre iniciativa e o direito à vida há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

Com efeito, sob o ponto de vista material da proposta, conclui-se que o E. Supremo Tribunal Federal julgou integralmente constitucional a Lei Estadual nº 7.737/2004, do Estado do Espírito Santo, cuja similaridade com o disposto na preposição legislativa em análise é patente.

Do ponto de vista da técnica legislativa, em atendimento às regras previstas na Lei Complementar Federal nº 95/98[1], que rege a redação dos atos normativos, a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" deve ser reservada apenas para as leis de pequena repercussão, recomendando-se, a fim de possibilitar o amplo conhecimento da norma, o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias da data de sua publicação para a entrada em vigor, com a seguinte Emenda Modificativa ao Projeto de Lei nº 67/2021:

“O art. 5º passa a ter a seguinte redação:

Art. 5º Esta Lei entra em vigor após decorridos 45 (quarenta e cinco) dias de sua publicação oficial.”

[1] LC 95/98. Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão.

3. Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 067/2021, por inexistir, prima facie, inconstitucionalidade manifesta ou um dos demais vícios previstos na norma regimental, observada a recomendação de que a cláusula de vigência preveja prazo razoável a fim de possibilitar o amplo conhecimento da norma (art. 8º da LC 95/98).

 É o parecer. 

Guaíba, 11 de maio de 2021.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador Geral

OAB/RS nº 107.136

 

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11/05/2021 10:30:33
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