Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 063/2021
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel
     
PARECER : Nº 128/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Determina que os serviços terceirizados pelo Poder Público, que utilizam veículos, caminhões e máquinas para a prestação de serviços, sejam equipados com GPS para rastreamento, e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Miguel Crizel (PSL) apresentou o Projeto de Lei nº 063/2021 à Câmara Municipal, o qual “Determina que os serviços terceirizados pelo Poder Público, que utilizam veículos, caminhões e máquinas para a prestação de serviços, sejam equipados com GPS para rastreamento, e dá outras providências”. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

[...]

A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei nº 063/2021 objetiva estabelecer mecanismo de controle e fiscalização dos contratos firmados entre o Município de Guaíba e empresas prestadoras de serviços que operem com veículos ou equipamentos automotores. Tais medidas se inserem na competência municipal e estão alinhadas aos objetivos de proteção do patrimônio público e dos princípios constitucionais que vinculam a Administração Pública.

Por outro lado, ocorre que o Projeto de Lei nº 063/2021, embora louvável o seu objeto, contém flagrante vício de iniciativa. A proposição esbarra no disposto no art. 61, § 1º, da Constituição Federal, que estabelece a iniciativa privativa para a deflagração do processo legislativo, fixando as disciplinas próprias do Presidente da República, aplicáveis por simetria aos demais entes federados, entre eles o Município de Guaíba:

Art. 61 (...)

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

[...]

O conteúdo normativo do Projeto de Lei nº 063/2021, do Poder Legislativo, invade a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no aludido art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao criar condicionantes às contratações públicas de serviços por meio de licitação, por dever constar obrigação de que as interessadas comprovem a instalação e operem seus veículos mediante sistema de monitoramento via satélite. A alteração das regras contratuais sobre a prestação do serviço não cabe ao Poder Legislativo, mas apenas ao Executivo, enquanto esfera de poder responsável pela contratação dos serviços úteis à comunidade.

Lembre-se que a medida é uma daquelas que tem aptidão para gerar o desequilíbrio dos contratos administrativos, uma vez que a ordem para a instalação e operação de veículos mediante sistema GPS, GSM ou GPRS gerará custos adicionais não estabelecidos previamente e não contemplados nas precisas propostas ofertadas nas licitações. Considerando isso, eventuais alterações devem ser implementadas por ato exclusivo do Poder Executivo, sendo o Prefeito a única autoridade legitimada para tanto.

O conteúdo do Projeto de Lei nº 063/2021 também vai de encontro ao princípio constitucional da separação dos poderes, disposto no art. 2º da Constituição Federal. A matéria ofende a chamada reserva de administração, insculpida no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal e decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes, ao dispor a respeito da organização de serviços municipais, sobre os quais cabe ao Poder Executivo iniciar o processo legislativo ou implementar diretamente.

Não se pode esquecer, por fim, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Destarte, apesar de ser meritória a propositura legislativa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Legislativo, uma vez que não cabe aos Vereadores a iniciativa para regulamentar a prestação dos serviços contratados pelo Executivo.

A propósito, destaca-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

AÇÃO DIRETA DE INCOSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE CANGUÇU. LEI MUNICIPAL 4.073, DE 04 DE JULHO DE 2014. DISPÕE SOBRE A INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ÁGUA E ENERGIA ELÉTRICA POR EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS. LEI DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO FIRMADO ENTRE O MUNICÍPIO E AS EMPRESAS CONCESSIONÁRIAS. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. 1. Existência de vício formal na lei objurgada, de iniciativa do Poder Legislativo, o qual, ao dispor sobre as condições a serem pactuadas pelo Município e pelas empresas concessionárias dos serviços de água e energia elétrica, invadiu matéria de competência reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal, nos termos dos arts. 8º, caput, 60, II, alínea d , e 82, VII, da Constituição Estadual, afrontando, ainda, o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 10 da Constituição Estadual. 2. A norma ainda padece de inconstitucionalidade material, pois ensejou a alteração do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos firmados entre o Município e as empresas concessionárias dos serviços de água e energia elétrica, maculando o art. 163, parágrafo 4º, da Constituição Estadual. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70065372211, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Barcelos de Souza Junior, Julgado em 23/11/2015)

Foi também pela reserva de iniciativa, com a consequente inconstitucionalidade da Lei nº 9.144, de 24 de agosto de 2009, do Município de Santo André, o Parecer do Ministério Público do Estado de São Paulo na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 184.769-0/2-00, a qual possuía conteúdo normativo idêntico ao Projeto de Lei ora em análise:

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Santo André, da Lei nº 9.144, de 24 de agosto de 2009, daquele Município, que “DISPÕE SOBRE a IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA DE RASTREAMENTO POR GPS e MONITORAMENTO NAS AMBULÂNCIAS DA REDE DE SAÚDE PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE SANTO ANDRÉ e DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. Projeto nascido no Poder Legislativo, com usurpação das atribuições do Prefeito. Violação do princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE). Criação de despesa, que decorre da necessidade de instalação de aparelhos de GPS nas ambulâncias e implantação e manutenção do sistema de monitoramento (art. 25, CE). Parecer pela declaração da inconstitucionalidade. (Autos nº. 994.09.224409-5 (184.769-0/2-00) Requerente: Prefeito Municipal de Santo André Objeto: Lei nº 9.144, de 24 de agosto de 2009, do Município de Santo André, São Paulo, 1 de fevereiro de 2010. Maurício Augusto Gomes Subprocurador-Geral de Justiça - Assuntos Jurídicos).

Com efeito, a questão objeto da controvérsia já foi decidida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme se observa no precedente abaixo reproduzido:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei nº 9.144, de 24 de agosto de 2009, do Município de Santo André, que dispõe sobre a obrigatoriedade da implantação do sistema de rastreamento por GPS e monitoramento nas ambulâncias da rede de saúde pública - Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo - Vício de iniciativa caracterizado - Violação ao princípio da Separação de Poderes consagrado no artigo 5º da Constituição do Estado de São Paulo - Criação de despesa pública sem indicação da origem dos recursos - Inadmissibilidade - Afronta ao disposto no artigo 25 da Constituição Paulista. Ação procedente - Inconstitucionalidade da indigitada lei municipal declarada.

3. Conclusão:

Diante dos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88, no artigo 60, II, alínea “d”, da CE/RS e no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer.

Guaíba, 05 de maio de 2021.

 

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador Geral

OAB/RS nº 107.136

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ICP-BrasilFERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS:01902836022
05/05/2021 13:55:21
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