Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 044/2021
PROPONENTE : Ver. João Caldas
     
PARECER : Nº 098/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a contratação de prestação de serviços de terceirização de mão de obra e serviços técnicos profissionais especializados para órgãos da administração pública direta, indireta, autárquicas e fundacional, empresas públicas, sociedades de economia mista no âmbito do município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório

O Projeto de Lei nº 044/2021, de autoria do Vereador João Caldas, dispõe sobre a contratação de prestação de serviços de terceirização de mão de obra e serviços técnicos profissionais especializados para órgãos da administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional, empresas públicas e sociedades de economia mista no âmbito do Município de Guaíba. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. mérito

De fato, a norma inscrita no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido –, no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como o instituto do controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

Tal feixe de competências é de observância obrigatória por parte de todos os entes federados – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios –, havendo, também, disposição expressa na Constituição Estadual Gaúcha de que os Municípios devem obediência aos princípios estabelecidos na Carta Estadual e na Constituição Federal (art. 8º). Desse mandamento, então, surge o dever de o Município de Guaíba, ao firmar a sua legislação, ter especial atenção ao que dispõe a CF/88 sobre distribuição de competências legislativas, para que não usurpe competências de outros entes, violando o pacto federativo.

A respeito da competência legislativa sobre licitações e contratos administrativos, tem-se que, pela sistemática constitucional, a competência é privativa especificamente no que pertine a normas gerais, como bem destaca a doutrina de Marçal Justen Filho (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, p. 18-19):

A interpretação da fórmula ‘normas gerais’ tem de considerar, em primeiro lugar, a tutela constitucional à competência legislativa específica para cada esfera política disciplinar licitação e contratação administrativa. A competência legislativa sobre o tema não é privativa a União. Se a competência para disciplinar licitação e contratação administrativa fosse exclusiva da União, a CF/88 não teria aludido a ‘normas gerais’ e teria adotado cláusulas similares às previstas para o direito civil, comercial, penal, etc.  Não foi casual o art. 21 ter distribuído essas competências em dois incisos distintos. No inc. I, alude-se a competência privativa para dispor amplamente sobre todas as normas acerca de certos campos (direito civil, comercial, penal, etc.); já o inc. XXVII trata da competência privativa para dispor apenas sobre normas gerais. A vontade constitucional, portanto, é de ressalvar a competência dos demais entes federais para disciplinar a mesma matéria.

Logo, apenas as normas ‘gerais’ são de obrigatória observância para as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante, exercendo competência legislativa irredutível para dispor acerca das normas específicas. A expressão ‘norma geral’ pressupõe a existência de ‘norma especial’. Portanto, a união não dispõe de competência privativa e exclusiva para legislar sobre licitações e contratos administrativos. Os demais entes federativos também dispõem de competência para disciplinar o tema.

Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul é clara ao defender que a legislação sobre normas gerais de licitações e contratos administrativos é da competência legislativa privativa da União, com fundamento no art. 22, XXVII, da Constituição Federal de 1988 (“Compete privativamente à União legislar sobre: [...] normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III”):

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 656/2018 DE PANTANO GRANDE, QUE OBRIGA A “UTILIZAÇÃO DO SEGURO-GARANTIA DE EXECUÇÃO DE CONTRATOS PÚBLICOS DE OBRAS E DE FORNECIMENTO DE BENS E DE SERVIÇOS” (SEGURO ANTICORRUPÇÃO – SAC). 1. Compete à União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas e indiretas, cabendo aos municípios regrar os assuntos de interesse local, bem como suplementar a legislação federal e estadual, no que couber. Desrespeito a normas gerais editadas pela União. 2. LEI DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA. Matéria cuja atribuição é reservada ao Chefe do Poder Executivo. Ofensa aos artigos 1º, 8º, 10 e 82, incisos II e VII, da Constituição Estadual e artigos 22, inciso XXVII, e 30, incisos I e II, da Constituição Federal. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (ADI Nº 70079284279, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em: 15-04-2019)

A matéria também acaba por invadir de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da CF/88, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor sobre medidas e procedimentos específicos a serem observados no âmbito de toda a Administração Pública Municipal no que se relaciona às contratações de serviços terceirizados e técnicos profissionais especializados, cuja definição cabe a cada chefia de poder ou de pessoa jurídica, por meio de processo legislativo deflagrado por iniciativa privativa ou mesmo de atos administrativos ordinatórios.

O Projeto de Lei nº 044/2021, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da CE/RS):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. (Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, 1993, p. 438-439).

O Projeto de Lei nº 044/2021 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Outrossim, a igualdade salarial já é direito garantido tanto em nível constitucional quanto infraconstitucional. Na CF/88, o art. 7º, XXX, prevê como direito laboral a “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”, tratando-se de direito fundamental cuja eficácia é imediata, ou seja, não há necessidade de qualquer intermediação legislativa para sua plena aplicabilidade. Na CLT, também há previsão da igualdade salarial entre mulheres e homens: “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo.” Assim, em que pese a impossibilidade de se legislar para a definição da obrigação, não há prejuízo a que se demande concretamente, desde já, a igualdade salarial entre mulheres e homens nas contratações administrativas, por meio dos instrumentos de fiscalização postos à disposição dos membros do Poder Legislativo.

3. Conclusão

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de incompetência do Município para legislar sobre a matéria (art. 22, inciso XXVII, CF/88) e de vício de iniciativa e afronta à separação dos poderes caracterizados com base nos arts. 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88 e arts. 5º, 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 8 de abril de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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