PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a divulgação de listagem de pacientes que aguardam por consultas com especialistas, exames e cirurgias na Rede Pública de Saúde do Município, por meio eletrônico no Sítio Eletrônico Oficial e expresso no mural da Secretaria Municipal de Saúde do Município de Guaíba" 1. RelatórioO Vereador Miguel Crizel apresentou o Projeto de Lei nº 014/2021 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a divulgação de listagem de pacientes que aguardam por consultas com especialistas, exames e cirurgias na rede pública de saúde do Município de Guaíba, por meio eletrônico e no mural da Secretaria Municipal de Saúde. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno. O proponente apresentou substitutivo, entregue à Procuradoria para análise jurídica. 2. MÉRITOO artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida pretendida por meio do Projeto de Lei nº 014/2021 se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 23, II, da CF/88), não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22 da CF/88), a proposta estabelece um novo instrumento de garantia dos direitos à publicidade e à transparência da gestão pública, diretrizes que possuem amparo constitucional nos princípios da administração pública (artigo 37, caput, CF/88). Quanto à matéria de fundo, não há qualquer violação ao conteúdo material da CF/88 e da CE/RS. A Constituição Federal, no artigo 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O artigo 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:
Percebe-se, pois, que o substitutivo ao Projeto de Lei nº 014/2021 está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do artigo 5º da CF. Ainda, a proposta é materialmente compatível com a disciplina constitucional dos princípios da administração pública, os quais estão previstos genericamente no artigo 37, caput, da CF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”. Ou seja, desde a promulgação da CF/88, o princípio da publicidade é aplicado no âmbito da Administração Pública, pautando toda a atividade pública. Inclusive, no estudo da matéria “atos administrativos”, é clássica a lição de que a publicação dos atos oriundos da atividade administrativa configura requisito de eficácia, isto é, só com a garantia da publicidade esses atos estarão aptos à produção dos seus efeitos. Veja-se, portanto, o quanto é valorizado o princípio constitucional da publicidade em relação à atividade administrativa. Na Constituição Estadual Gaúcha, por sua vez, o princípio da publicidade é consagrado no artigo 19, caput, nos seguintes termos: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação e o seguinte”. Por fim, impossível deixar de recordar o previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, que prevê o direito fundamental ao acesso à informação: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Desse modo, não há dúvidas de que todas as medidas políticas que, de algum modo, impliquem a obrigação de assegurar publicidade à atividade pública possuem respaldo constitucional. Além disso, a determinação que se pretende instituir também encontra amparo na legislação federal. A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, regula o direito ao acesso a informações previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, disciplinando os procedimentos a serem observados pela União, Estados, DF e Municípios para a garantia dessa prerrogativa pública. Importante, nesse caso, transcrever o artigo 3º, que institui as diretrizes da publicidade das informações de interesse coletivo ou geral:
Assim, sob os aspectos da competência e da conformidade material da proposta com a Constituição Federal de 1988 e com a Constituição Estadual Gaúcha, não se vê a ocorrência de obstáculos à tramitação. Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste procurador sobre a matéria, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado. A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente. Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro. Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:
Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:
O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148). O artigo 61, § 1º, da CF/88, assim como o artigo 60, II, “d”, da CE/RS não preveem restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo a obrigação de o Poder Público assegurar publicidade às listagens de pacientes que aguardam por consultas com especialistas, exames e cirurgias na rede pública de saúde. A propósito, essa matéria já foi levada a julgamento em diversas ações diretas de inconstitucionalidade, cujo questionamento versou, exatamente, sobre a existência de vício formal de origem (reserva de iniciativa da proposta ao Chefe do Executivo) na instituição do dever de dar publicidade às listagens de espera por vagas na rede de ensino e de saúde. O TJRS julgou constitucional a Lei Municipal nº 2.976/16, de Novo Hamburgo, de iniciativa parlamentar, que dispôs sobre a obrigatoriedade da divulgação da capacidade de atendimento, lista nominal das vagas atendidas, total de vagas disponíveis e a lista de espera das vagas para a educação infantil no Município. Importante trazer à tona a ementa do referido acórdão, muito esclarecedora:
Conforme bem defendeu o Tribunal de Justiça Gaúcho, leis aprovadas nesse sentido não regulam a forma ou o conteúdo da prestação de serviços públicos, nem dispõem sobre as atribuições dos órgãos públicos, apenas garantindo a efetividade do direito fundamental ao acesso à informação e à transparência da atividade administrativa, razão por que inexiste violação às hipóteses de iniciativa reservada previstas constitucionalmente. Destacam-se, ainda, os seguintes trechos do acórdão gaúcho:
O mero fato de a norma se destinar ao Poder Executivo não contamina a proposta de vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que, como foi visto, as hipóteses de reserva de iniciativa previstas na CF/88 e na CE/RS não admitem interpretação ampliativa, por consistirem em exceções à regra geral da iniciativa concorrente. Caso se admitisse interpretação tão rígida, o Poder Legislativo ficaria, basicamente, de mãos amarradas, impedido de exercer uma de suas funções típicas. Obviamente, não é esse o interesse da Constituição, que apenas limita os casos de iniciativa nas hipóteses em que evidentemente houver usurpação da independência e harmonia dos demais poderes. Quanto a esse aspecto, traz-se excerto do acórdão já citado:
A Lei Municipal nº 8.328/2018, do Município de Rio Grande, que dispõe sobre a obrigatoriedade de divulgação da lista de espera de consultas, exames médicos e cirurgias eletivas, foi declarada constitucional pelo TJRS, conforme a ementa a seguir transcrita:
Portanto, tem-se que, por todos os fundamentos acima expostos e pela recente jurisprudência do TJRS no sentido da constitucionalidade de leis similares, não há vícios formais ou materiais de inconstitucionalidade que afetem a proposição. [1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>. 3. ConclusãoDiante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do substitutivo ao Projeto de Lei nº 014/2021, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário. Guaíba, 18 de fevereiro de 2021. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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