Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 071/2020
PROPONENTE : Ver. Ale Alves
     
PARECER : Nº 022/2021
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui a Política Municipal de Utilização Sustentável dos Veículos de Tração Animal VTA e redução gradativa do Uso e dá outras Providências"

1. Relatório

O Vereador Ale Alves apresentou o Projeto de Lei nº 071/2020 à Câmara Municipal, que institui a Política Municipal de Utilização Sustentável dos Veículos de Tração Animal (VTA) e Redução Gradativa do Uso. A proposição foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A lei que se pretende instituir se insere, efetivamente, na definição de interesse local, além de revestir-se do caráter de norma suplementar à legislação federal. Isso porque o Projeto de Lei nº 071/2020, além de veicular matéria de relevância para o Município, não atrelada às competências privativas da União (CF, art. 22), estabelece uma política de utilização sustentável e redução gradativa dos veículos de tração animal, com vistas a assegurar a autonomia dos condutores de VTAs e o bem-estar dos animais, estabelecendo, ainda, infrações administrativas e respectivas penalidades para a utilização irregular dos veículos, o que vem ao encontro do art. 225, § 1º, VII, da CF/88 e do art. 251, § 1º, VII, da CE/RS.

A respeito da competência suplementar dos Municípios para legislar sobre a proteção e defesa do meio ambiente, transcreve-se a esclarecedora lição de Paulo de Bessa Antunes, um dos maiores expoentes em Direito Ambiental:

Na forma do artigo 23 da Lei Fundamental, os Municípios têm competência administrativa para defender o meio ambiente e combater a poluição. Contudo, os Municípios não estão arrolados entre as pessoas jurídicas de direito público interno encarregadas de legislar sobre meio ambiente. No entanto, seria incorreto e insensato dizer-se que os Municípios não têm competência legislativa em matéria ambiental. O artigo 30 da Constituição Federal atribui aos Municípios competência para legislar sobre: assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e estadual no que couber, promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Está claro que o meio ambiente está incluído no conjunto de atribuições legislativas e administrativas municipais e, em realidade, os Municípios formam um elo fundamental na complexa cadeia de proteção ambiental. A importância dos Municípios é evidente por si mesma, pois as populações e as autoridades locais reúnem amplas condições de bem conhecer os problemas e mazelas ambientais de cada localidade, sendo certo que são as primeiras a localizar e identificar o problema. É através dos Municípios que se pode implementar o princípio ecológico de agir localmente, pensar globalmente.” (‘Direito ambiental’. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pp. 77-8).

Importante, ainda, destacar o entendimento firmado no STF sobre os limites da competência legislativa municipal em matéria de meio ambiente (RE nº 586.224/SP, julgado em 5/3/2015), publicado no Informativo nº 776:

O Município é competente para legislar sobre o meio ambiente, juntamente com a União e o Estado-membro/DF, no limite do seu interesse local e desde que esse regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI, c/c o art. 30, I e II, da CF/88).

Além disso, na ADI nº 70024563785, julgada pelo TJRS em 29/09/2008, afirmou-se a competência legislativa municipal para ordenar o trânsito urbano em relação aos condutores de veículos de tração animal no estrito âmbito local, tendo como fundamento a previsão do art. 30, I, da CF/88:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROIBIÇÃO DE TRÂNSITO DE VEÍCULOS MOVIDOS À TRAÇÃO ANIMAL NO PERÍMETRO URBANO DA CIDADE. INTERESSE LOCAL PREPONDERANTE, NO EXERCÍCIO DO PODER DE POLICIA, VISANDO MELHORIA NO TRÂNSITO LOCAL. PREPONDERÂNCIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PARTICULAR. NORMA QUE, PROÍBE O TRABALHO QUE ACARRETE MAUS TRATOS AOS ANIMAIS, EM CONSONÂNCIA COM O DISPOSTO NO ARTIGO 225, VII, DA CF. O Município tem competência para ordenar o trânsito urbano, que é matéria de seu interesse local, bem como o transporte, nos termos do que permite o artigo 30, I e V, da CF. A utilização de animais no perímetro urbano em veículos de tração, nas hipóteses previstas no artigo 1º, caput, da Lei 4.227/07 interessa à municipalidade e aos munícipes, visando, obviamente, facilitar o tráfego na cidade, no exercício do poder de polícia, preponderando o interesse público sobre o particular. Proibição de maus tratos aos animais, com amparo no artigo 23, VI, conjugado com o artigo 225, VII, ambos da Constituição Federal. [...] (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70024563785, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Redator: Vasco Della Giustina, Julgado em: 29-09-2008).

Portanto, verificado o interesse local na regulamentação do tráfego urbano através dos veículos de tração animal, com o fim de sua progressiva redução e garantia de bem-estar dos animais, e considerando o precedente jurisprudencial acima destacado, reconhece-se a competência legislativa municipal, em especial porque o Código de Trânsito Brasileiro estabelece, como competências municipais, o registro e licenciamento de VTAs e a autorização de sua condução, devendo tais atos respeitar a regulamentação local pertinente (arts. 24, XVII e XVIII, 129 e 141, § 1º, do CTB):

Art. 24 Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição: (Redação dada pela Lei nº 13.154, de 2015)

[...]

XVII - registrar e licenciar, na forma da legislação, veículos de tração e propulsão humana e de tração animal, fiscalizando, autuando, aplicando penalidades e arrecadando multas decorrentes de infrações; (Redação dada pela Lei nº 13.154, de 2015)

XVIII - conceder autorização para conduzir veículos de propulsão humana e de tração animal;

Art. 129. O registro e o licenciamento dos veículos de propulsão humana e dos veículos de tração animal obedecerão à regulamentação estabelecida em legislação municipal do domicílio ou residência de seus proprietários. (Redação dada pela Lei nº 13.154, de 2015)

Art. 141 [...]

§ 1º A autorização para conduzir veículos de propulsão humana e de tração animal ficará a cargo dos Municípios.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por Vereador sobre a matéria tratada, já que, com base nos fundamentos acima expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva. Essa também foi a conclusão do TJRS ao julgar a ADI nº 70030187793, que versou sobre semelhante diploma legal do Município de Porto Alegre (Lei Municipal nº 10.531/2008), reconhecendo que o programa de redução gradativa no número de veículos de tração animal e de veículos de tração humana naquela localidade, de iniciativa parlamentar, não possuía vício de iniciativa no processo legislativo:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. NORMA MUNICIPAL QUE CRIA PROGRAMA DE REDUÇÃO GRADATIVA NO NÚMERO DE VEÍCULOS DE TRAÇÃO ANIMAL E DE VEÍCULOS DE TRAÇÃO HUMANA. VÍCIO FORMAL INEXISTENTE. Não é inconstitucional a lei de iniciativa da Câmara de Vereadores que não atribui ao Poder Executivo quaisquer ônus e merece deste a defesa de sua constitucionalidade. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE, POR MAIORIA. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70030187793, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Redator: Danúbio Edon Franco, Julgado em: 05-10-2009).

No entanto, destaca-se, para fins de alerta, que no precedente acima destacado a tese do vício de iniciativa foi rejeitada por maioria, tendo sido travado um amplo debate a respeito dos limites para a regulamentação da matéria por iniciativa parlamentar. Tal fato indica que o tema em análise – definição de políticas públicas envolvendo condutores de veículos de tração animal na esfera municipal – possui divergências no Poder Judiciário, de modo que, embora se esteja acolhendo a tese vencedora (de inexistência de vício de iniciativa), é possível que a divergência ocorra novamente e vença a tese oposta.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém destacar que o objetivo principal do Projeto de Lei nº 071/2020 é promover a proteção dos animais enquanto componentes do meio ambiente natural. A Constituição Federal, no artigo 225, caput, dispõe: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” O § 1º, detalhando os meios de garantir a proteção ambiental, obriga o Poder Público a “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”

Do mesmo modo, o artigo 251, caput, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul estabelece: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo a todos exigir do Poder Público a adoção de medidas nesse sentido.” Entre as medidas de proteção ao meio ambiente, o § 1º, VII, prevê: “proteger a flora, a fauna e a paisagem natural, especialmente os cursos d’água, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica e paisagística, provoquem extinção de espécie ou submetam os animais a crueldade.”

A proposta estabelece medidas fundadas no poder de polícia administrativa para regular a utilização dos VTAs no Município de Guaíba, prevendo condicionamentos, obrigações e infrações administrativas. Nessa linha, de acordo com o art. 78, caput, do CTN,

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Hely Lopes Meirelles leciona que “o poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.” (Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 134). Trata-se de prerrogativa própria de Estado que limita ou condiciona o exercício de liberdades individuais visando atender ao interesse público, que pode envolver, por exemplo, o bem-estar dos animais e o trânsito regular de veículos no perímetro urbano municipal, tal como propõe o PL nº 071/2020.

Portanto, considerando a jurisprudência do TJRS (70024563785 e 70030187793) a respeito da competência legislativa municipal e da iniciativa parlamentar para proposições sobre políticas públicas para condutores de veículos de tração animal, e tendo em vista que as medidas veiculadas na proposta se fundam no poder de polícia, tem-se que, ao menos em tese, o Projeto de Lei nº 071/2020 está apto juridicamente para a tramitação regimental.

3. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei nº 071/2020, podendo seguir o seu trâmite nos termos do Regimento Interno da Câmara de Vereadores de Guaíba.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 3 de fevereiro de 2021.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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