Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 063/2020
PROPONENTE : Ver. Ernani Chacrinha
     
PARECER : Nº 168/2020
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui no Município de Guaíba o Dia Municipal da Mãe Oxum"

1. Relatório

O Vereador Ernani Chacrinha apresentou o Projeto de Lei nº 063/2020 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, o Dia Municipal da Mãe Oxum, a ser comemorado, anualmente, em 08 de dezembro. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade, à competência da Câmara e ao caráter pessoal das proposições.

2. MÉRITO

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

 IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Alexandre de Moraes afirma que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)". (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740).

O Projeto de Lei nº 063/2020 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, na medida em que institui, no Município de Guaíba, o Dia Municipal da Mãe Oxum, a ser comemorado, anualmente, em 08 de dezembro. A fixação de datas comemorativas na esfera municipal atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade, incentivando o debate e a reflexão.

Seguindo o entendimento desta Procuradoria Jurídica nos pareceres aos Projetos de Lei nºs 099/2017, 152/2017, 127/2018 e 141/2018, importa estabelecer análise pormenorizada quanto à função orientadora do princípio da laicidade que informa a ordem constitucional da República Federativa do Brasil, questão complexa que envolve a apreciação de princípios constitucionais e de valores metajurídicos.

O princípio da laicidade é previsto no artigo 19 da Constituição Federal de 1988:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Faz-se necessário amoldar, ainda, o pluralismo religioso aos ditames democráticos e ao princípio da laicidade, não cabendo a um Estado Democrático de Direito incentivar determinada religião. Nesse sentido, a liberdade de expressão e mais especificamente a liberdade de religião devem ter tratamento distinto na esfera privada, em que todos são livres para exercerem sua religiosidade como preferirem, e no âmbito público, em que a religião deve ser tratada com completa imparcialidade, sem ofender o pluralismo e o respeito à liberdade de crença e de religião de todos. O Estado, para salvaguardar o pluralismo religioso e a liberdade de religião, tem o dever de garantir que as instituições públicas e as políticas públicas permaneçam neutras, sem dar preferência a nenhuma religião ou culto.

O princípio da laicidade e a neutralidade religiosa e ideológica do Estado pretendem garantir o livre-arbítrio às pessoas para optar ou não entre os diversos credos ou religiões existentes, ampliando, tanto quanto possível, essas liberdades nos diversos contextos sociais e institucionais, favorecendo o pluralismo de ideias e proibindo condutas tais como: a doutrina forçada, a afirmação positiva de crenças ou a discriminação religiosa e/ou ideológica.[1] Assim, o Estado deve defender tanto a posição jurídica de preservação do princípio da laicidade quanto a posição jurídica de proteção ao direito de liberdade de crença.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que a defesa do princípio do secularismo consiste em um dos princípios fundamentais dos Estados em respeito aos direitos individuais, sendo considerada a laicidade necessária para a proteção do Estado democrático. A instituição de datas oficiais que promovam a comemoração de símbolos e/ou entidades religiosas pode ser considerada, nesses termos, contrária aos princípios do secularismo e da laicidade, se ocorresse favorecimento com recursos públicos a tais eventos.

Desse modo, considera-se que, em respeito ao direito fundamental à liberdade de crença e religião, o Estado possui deveres eminentemente de natureza negativa, devendo abster-se de incentivar ou mesmo promover, ainda que indiretamente, determinadas religiões. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que a dimensão negativa da liberdade de consciência e de religião não se satisfaz apenas com a simples ausência de símbolos religiosos, mas contempla também as práticas e símbolos que expressam uma crença, uma religião ou o ateísmo, devendo o Estado ter especial atenção e proteção para não expressar uma convicção religiosa. Essa abstenção evita ainda que o Poder Público adentre em eventuais tensões de ordem religiosa. Levando em conta tal dimensão negativa e o dever de não estabelecer preferências ou promoção de convicções religiosas, a jurisprudência de nossos tribunais tem sido no sentido de que nada impede a criação de mera data comemorativa com esse intuito. Lapidar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo quanto à Lei que institui como evento cultural, no Município de Suzano, o “Dia da Bíblia”, estabelecendo ainda a inexistência de vício de competência ou de iniciativa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei que institui como evento cultural oficial do município de Suzano o Dia da Bíblia – Ato normativo que cuida de matéria de interesse local – Mera criação de data comemorativa. Constitucionalidade reconhecida. Não ocorrência de vício de iniciativa do projeto de lei por vereador. Norma editada que não estabelece medidas relacionadas à organização da administração pública, nem cria deveres diversos daqueles genéricos ou mesmo despesas extraordinárias. Ação de Inconstitucionalidade julgada improcedente.[...] Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive a fixação de datas comemorativas, e de suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II, da CF). A fixação de datas comemorativas por lei municipal não excede os limites da autonomia legislativa de que foram dotados os municípios." (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0140772-62.2013.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Rel. Antonio Carlos Malheiros, j. 23/10/2013).

No que diz respeito à instituição de datas comemorativas alusivas a figuras ou símbolos religiosos, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal analisou incidentalmente a constitucionalidade de lei que instituiu o Dia do Evangélico, assentando o entendimento de que não houve afronta ao princípio da laicidade. No julgamento, o TJ/DF entendeu ser constitucional o feriado, associando-lhe o exercício regular de direito de culto religioso (art. 5º, VI, da CF/88). Da decisão extrai-se o seguinte ponto digno de nota, sublinhando ainda que o ordenamento jurídico brasileiro admite, inclusive, a instituição de feriados religiosos:

1 – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NO ART. 19, I, VEDA A UNIÃO, OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS, ESTABELECER CULTOS RELIGIOSOS OU IGREJAS, SUBVENCIONÁ-LOS, EMBARAÇAR-LHES O FUNCIONAMENTO OU MANTER COM ELES OU SEUS REPRESENTANTES RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA OU ALIANÇA. 2 – NÃO PROÍBE QUE ALGUM DESSES ENTES DA FEDERAÇÃO, NO EXERCÍCIO DE SUA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, INSTITUA DATA COMEMORATIVA, A EXEMPLO DO QUE FEZ O DISTRITO FEDERAL, QUANDO INSTITUIU O DIA DO EVANGÉLICO. 3 – NÃO É, PORTANTO, INCONSTITUCIONAL LEI ASSIM EDITADA. E OS ATOS COMETIDOS COM BASE NELA SÃO VÁLIDOS, COMO SÓI ACONTECER COM A COMEMORAÇÃO DO DIA DO EVANGÉLICO QUE SE CARACTERIZA EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO -- O DE CULTO RELIGIOSO (CF, ART. 5º, VI). E QUEM EXERCE UM DIREITO, SALVO ABUSO, NÃO CAUSA DANO A OUTREM (CC, ART. 160, I). 4 – VISLUMBRAR EM SITUAÇÕES QUE TAL PRECONCEITO OU DISCRIMINAÇÃO É EMPRESTAR RAZÃO À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, PRAGA QUE, AO LONGO DA HISTÓRIA, TEM FEITO E CONTINUA FAZENDO INÚMERAS VÍTIMAS. 5 – APELAÇÃO NÃO PROVIDA. Por outro lado, de se observar que instituir data comemorativa, religiosa, cívica ou atinente a alguma manifestação cultural, como ocorre com o carnaval, não configura discriminação ou preconceito. Sem qualquer razão de ser, portanto, a invocação da L. 9.459/97. Registre-se ainda que da mesma maneira que se instituiu, por lei, no âmbito do Distrito Federal, feriado no dia 30 de novembro, data comemorativa do dia do evangélico, vários são outros dias do ano, por tradição da religião católica, considerados feriados nacionais, em comemoração a algum dia santo, a exemplo dos feriados da Semana Santa, Corpus Christi, Nossa Senhora da Aparecida, Natal, para não dizer dos feriados municipais em comemoração ao dia da santa ou santo padroeiro da cidade. São dias dedicados à oração, peregrinação, meditação e reflexão dos católicos, mas que os crédulos de outras religiões, a exemplo dos evangélicos, não podem sentir constrangimento, vergonha, humilhação ou que estão sendo desmoralizados, porque obrigados a escutar referências a respeito da data comemorativa... De se observar, portanto, que a instituição do ferido religioso comemorativo ao dia do Evangélico está em perfeita harmonia com a Constituição Federal e com a legislação específica que rege a matéria. (TJ-DF AC 20010110875766 DF; 4ª Turma Cível, o TJ/DF. Data de publicação: 27/02/2002.)

Identificaram-se diversos casos em que o Ministério Público ingressou com ação civil pública pelo fato de o Poder Público ter participado da organização de eventos de cunho religioso instituídos por lei, como, por exemplo, Apelação Cível 0141339-06.2007.8.26.0000 e Ação Civil Pública nº 533.01.2011.011832-9 (ambos na Justiça Estadual de SP), também por ferirem o disposto no art. 19, inciso I, da CF/88.

O Conselho Nacional do Ministério Publico produziu importante documento intitulado EM DEFESA DO ESTADO LAICO – Prática Processual, de 2014[2], que traz ações civis públicas, réplicas, razões e contrarrazões de recursos e, inclusive, representação para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, todas elas com um traço em comum: a defesa da laicidade do Estado e a busca pela garantia do direito de crença e de não crença.

Portanto, em relação à matéria de fundo ora em análise, como não houve previsão de inclusão da data no calendário oficial de eventos municipais, nem qualquer disposição que, direta ou indiretamente, atribua ao Poder Público o dever ou a faculdade de contribuir financeiramente ou com bens ou recursos humanos para a organização de eventos, inexiste afronta ao princípio da laicidade, insculpido no art. 19, inciso I, da CF/88.

[1] Jónatas Machado (2013, p. 137) afirma que, a partir disso e dos princípios subjacentes ao Estado Constitucional, não se deduz uma absoluta neutralidade religiosa e nem um dever de igualdade de tratamento de doutrinas, ritos ou símbolos.

[2] Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/ESTADO_LAICO_Volume_2__web.PDF>. Acesso em: 11 ago. 2020.

3. Conclusão

Diante do exposto, a Procuradoria Jurídica opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 63/2020, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário, feita a advertência da impossibilidade de inclusão da data no calendário oficial e de qualquer subvenção pública a eventos.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 19 de novembro de 2020.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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