Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 057/2020
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 142/2020
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Garante prioridade de encaminhamento a vaga de emprego e de cursos profissionalizantes às mulheres que tenham sido vítimas de violência doméstica e familiar, da forma que especifica"

1. Relatório

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 057/2020 à Câmara Municipal, objetivando garantir prioridade de encaminhamento a vagas de emprego e de cursos profissionalizantes às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende instituir programa sob a responsabilidade do Poder Executivo Municipal, no sentido de encaminhar prioritariamente a vagas de emprego e de cursos profissionalizantes as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, com o objetivo de inseri-las no mercado de trabalho, reduzindo a dependência financeira que, em muitas situações, é causa da impunidade pela sujeição das vítimas ao ambiente de violência.

Apesar do grande mérito, a matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição de 1988, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de programa que deve ser implementado pelo Poder Executivo para o encaminhamento prioritário das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, o que cabe exclusivamente ao Prefeito definir, através das políticas públicas a seu cargo.

O Projeto de Lei nº 057/2020, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 5º da CE/RS):

A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental. ("Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, p. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer a execução de programa sob a responsabilidade do Poder Executivo para o encaminhamento prioritário das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar a vagas de emprego e cursos, por se tratar de matéria de competência privativa do Prefeito de Guaíba, na esfera de sua discricionariedade. Aliás, veja-se precedente da jurisprudência relacionado ao caso em análise:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO. LEI 2.956/2016. VÍCIO DE INICIATIVA. DIVULGAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO OBSTÉTRICA E NEO-NATAL. 1. A lei 2.956/2016, do Município de Novo Hamburgo, que dispõe sobre a implantação de medidas de informação à gestante e parturiente sobre a Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal, visando, principalmente, a proteção destas contra a violência obstétrica no Município, teve o processo legislativo deflagrado por iniciativa da Câmara Municipal, o que conduz ao reconhecimento do vício de natureza formal do diploma em tela. 2. Violação aos art. 60, inc. II, alínea "d", e 82, inc. III e VII da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por força do art. 8° da mesma Carta Política. [...] 4. Vulneração ao princípio da separação de poderes. Precedentes do Órgão Especial. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70071547889, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, Julgado em: 20-03-2017)

O Projeto de Lei nº 057/2020 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Nada impede, porém, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no art. 114 do Regimento Interno, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88; art. 5º da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a remessa de indicação ao Prefeito para que, pela via política, implemente a medida, diante do seu mérito.

Guaíba, 3 de setembro de 2020.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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