Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 041/2020
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 117/2020
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui no município de Guaíba, o Programa de Educação Empreendedora no Ensino Fundamental"

1. Relatório

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 041/2020 à Câmara Municipal, objetivando instituir no Município de Guaíba o Programa de Educação Empreendedora no Ensino Fundamental. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende aprovar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 041/2020 visa aprimorar a educação escolar mediante a inclusão, no estrito âmbito local, de tema transversal relativo ao empreendedorismo, com vários objetivos, o que não encontra resistência na Constituição Federal de 1988 em relação à competência legislativa.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 041/2020 é promover a proteção dos interesses das crianças e dos adolescentes, alunos do ensino fundamental, por meio da educação para a cultura empreendedora.

O artigo 227, caput, da CF/88 prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas destinadas à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratadas como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º e 5º do referido Estatuto indicam, resumidamente, todos os direitos garantidos às crianças e adolescentes. Veja-se:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

É perceptível, portanto, que a medida pretendida no Projeto de Lei nº 041/2020 é compatível com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

Ocorre que o Projeto de Lei nº 041/2020, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do art. 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder.

Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo. Na Lei Orgânica Municipal, tais restrições são repetidas e detalhadas nos artigos 52 e 119, sendo de observância obrigatória na análise jurídica das proposições.

Ocorre que essas normas são demasiadamente amplas e carregam conceitos genéricos (“organização administrativa”, “servidores públicos”, “criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”, “serviços públicos”), tornando-se tumultuosa, na prática, a atividade legislativa por iniciativa parlamentar para atribuir obrigações ao Poder Executivo, porque geralmente esbarram na reserva de iniciativa legitimada pelo princípio da separação dos poderes.

No caso em análise, embora indiscutível o mérito, a medida acaba por determinar a inclusão do tema transversal “empreendedorismo” no ensino fundamental, o que transpõe os limites do princípio da separação dos poderes, visto que interfere em atos de organização administrativa que cabem apenas ao Prefeito praticar, com o apoio dos órgãos que formam o sistema municipal de ensino. Nessa linha, é importante lembrar que, nos termos do artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “b”, da CF/88, é privativa do Chefe do Executivo a iniciativa para projetos que disponham sobre organização administrativa, o mesmo se aplicando ao Estado do Rio Grande do Sul e aos seus Municípios, por força, também, do artigo 82, inc. III e VII, da CE/RS.

Em pesquisa a respeito do tema, obteve-se informação de que, em âmbito nacional, os temas transversais estão fixados nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, sendo definidos como assuntos que devem permear todas as disciplinas obrigatórias curriculares das instituições de ensino, por se referirem diretamente à educação para a cidadania e à formação moral e social dos estudantes. São temas que, embora não possuam autonomia curricular tal como a Matemática e a Língua Portuguesa, devem estar presentes na atuação profissional dos professores como complementação das disciplinas obrigatórias, visando ao aperfeiçoamento pessoal de cada educando. Os eixos atualmente existentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN são Ética, Meio Ambiente, Pluralidade Cultural, Saúde e Orientação Sexual, nada impedindo, contudo, que Estados e Municípios definam novas temáticas transversais, desde que respeitada a titularidade do Chefe do Executivo e que tais assuntos tenham relevância na perspectiva regional ou local.

Como foi dito, a definição das temáticas transversais, em âmbito local, compete ao Prefeito, com o apoio dos órgãos formadores do sistema municipal de ensino (art. 145 da LOM), não cabendo ao Poder Legislativo essa tarefa, até porque depende de atos de planejamento e de organização administrativa. Além disso, veja-se o que dispõem os artigos 52 e 119 da Lei Orgânica Municipal sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Ainda, em pesquisa de precedentes judiciais sobre a matéria, obteve-se acesso a atos do Ministério Público do Estado de São Paulo em que se sustenta a inconstitucionalidade formal (por vício de iniciativa) e material (por afronta à separação dos poderes) de leis municipais de iniciativa parlamentar que fixam temas transversais no currículo da rede municipal de ensino (Lei nº 6.906/07, de Franca/SP, e Lei nº 5.889/16, de Sumaré/SP). Eis alguns dos argumentos constantes nas peças de informação:

1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal que cria obrigação para o Poder Público Municipal (inclusão do estudo de temas transversais no currículo da rede municipal de ensino). Lei de iniciativa parlamentar. 2) Violação do princípio da separação de poderes (art.5º, 37, 47 II e XIV, e 144 da Constituição Estadual). 3) Inconstitucionalidade reconhecida.

[...]

Nada obstante, a definição da grade curricular é matéria que se insere no âmbito da gestão administrativa, sendo manifestamente estranha à atividade parlamentar.

Cabe aos órgãos técnicos da área da educação que integram a Administração Pública, em cada uma das esferas federativas definirem os conteúdos programáticos curriculares do ensino, respeitados os parâmetros mínimos estabelecidos na gestão administrativa da educação no plano nacional.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei sinalizando para a inclusão de novas disciplinas na grade curricular, essa atuação do legislador invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

Com relação à obrigatoriedade da disciplina de Educação Moral e Cívica nas escolas de Ensino Fundamental na Rede Pública a inconstitucionalidade é decorrente da ingerência do dever de administrar, que primordialmente compete ao Poder Executivo, o que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. Ao Poder Legislativo compete a primazia da função de editar leis, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Quando a pretexto de legislar o Poder Legislativo administra editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 041/2020 contém vício de iniciativa e afronta ao princípio da separação dos poderes, por dispor sobre matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo, nos termos dos artigos 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, dos artigos 5º e 82, VII, da CE/RS e artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida.

3. Conclusão

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa e afronta à separação dos poderes caracterizados com base nos arts. 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, arts. 5º e 82, VII, da CE/RS e arts. 52, VI e X, e 119, II, da LOM.

Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais, para a implementação da política prevista no PL nº 041/2020, diante do seu inquestionável mérito.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 28 de julho de 2020.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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