Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 035/2020
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 102/2020
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o programa municipal de transparência e combate à corrupção para atuação no âmbito do controle externo da atividade pública no município de Guaíba"

1. Relatório

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 035/2020 à Câmara Municipal, objetivando instituir o Programa Municipal de Transparência e Combate à Corrupção, para atuação no âmbito do controle externo da atividade pública no Município de Guaíba. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pela Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende criar um programa municipal de transparência e combate à corrupção, com o fim de articular esforços e implementar ações para a prevenção de possíveis desvios de conduta de agentes públicos e particulares, de modo a fortalecer a transparência dos atos administrativos e o controle dos recursos públicos (art. 1º). Para tanto, a proposição institui o Conselho Municipal de Transparência e Combate à Corrupção, órgão colegiado e consultivo vinculado à Secretaria Municipal de Governo (art. 2º), ao qual competirá exercer diversas competências relativas ao controle da função administrativa nos aspectos de legalidade e de eficiência (art. 3º), ações que, inclusive, já estão no campo da função fiscalizadora do Poder Legislativo Municipal.

A matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito da criação de órgão municipal vinculado à Secretaria Municipal de Governo, com competências que já devem ser desempenhadas pelo Poder Legislativo no âmbito do controle externo, com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 71 da CF/88), verificando-se presente inconstitucionalidade formal por afronta aos arts. 60, II, “d”, e 82, VII, ambos da CE/RS:

Art. 60 - São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 - Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e arts. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental.” (em "Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer os programas que devem ser cumpridos pelo Poder Executivo, muito menos criar órgãos públicos que lhe sejam vinculados hierarquicamente, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade. Vejam-se os precedentes do STF:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ALAGONA N. 6.153, DE 11 DE MAIO DE 2000, QUE CRIA O PROGRAMA DE LEITURA DE JORNAIS E PERIÓDICOS EM SALA DE AULA, A SER CUMPRIDO PELAS ESCOLAS DA REDE OFICIAL E PARTICULAR DO ESTADO DE ALAGOAS. 1. Iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Estadual para legislar sobre organização administrativa no âmbito do Estado. 2. Lei de iniciativa parlamentar que afronta o art. 61, § 1º, inc. II, alínea e, da Constituição da República, ao alterar a atribuição da Secretaria de Educação do Estado de Alagoas. Princípio da simetria federativa de competências. 3. Iniciativa louvável do legislador alagoano que não retira o vício formal de iniciativa legislativa. Precedentes. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI n. 2.329, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, Pleno, DJe de 25.6.10).

Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Representação de inconstitucionalidade de lei municipal em face de Constituição Estadual. Processo legislativo. Normas de reprodução obrigatória. Criação de órgãos públicos. Competência do Chefe do Poder Executivo. Iniciativa parlamentar. Inconstitucionalidade formal. Precedentes. 1. A orientação deste Tribunal é de que as normas que regem o processo legislativo previstas na Constituição Federal são de reprodução obrigatória pelas Constituições dos Estados-membros, que a elas devem obediência, sob pena de incorrerem em vício insanável de inconstitucionalidade. 2. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que padece de inconstitucionalidade formal a lei resultante de iniciativa parlamentar que disponha sobre atribuições de órgãos públicos, haja vista que essa matéria é afeta ao Chefe do Poder Executivo. 3. Agravo regimental não provido. (RE 505476 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 21/08/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 05-09-2012 PUBLIC 06-09-2012 – grifos acrescidos)

O Projeto de Lei nº 035/2020 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Vale destacar, por oportuno, que a Câmara Municipal de Guaíba já deve desempenhar as competências previstas no art. 3º do Projeto de Lei nº 035/2020 com base na sua função fiscalizadora, inclusive com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 71 da CF/1988), a título individual (por cada vereador) ou mesmo coletivo (através das comissões permanentes ou temporárias), independentemente da criação de leis municipais. Assim, embora a proposição em análise seja inviável sob o ponto de vista constitucional, por haver vício formal de inconstitucionalidade com base nos arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da Constituição Estadual, nada impede que os vereadores desempenhem as tarefas do art. 3º individual ou coletivamente, em busca da proteção aos princípios da legalidade e da eficiência na Administração Pública.

3. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe – PL nº 035/20, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, da CF/88; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, ambos da CE/RS), bem como por afronta ao art. 119, inciso II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 8 de junho de 2020.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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