Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 031/2020
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 089/2020
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"“Cria o fundo emergencial de Combate à covid-19 - FECC, destinado ao enfrentamento dos efeitos da pandemia do novo Coronavírus no Município de Guaíba, e dá outras providências"

1. Relatório

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 031/2020 à Câmara Municipal, que objetiva criar o Fundo Emergencial de Combate à Covid-19 – FECC, destinado ao enfrentamento dos efeitos da pandemia do novo Coronavírus no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal.

2. FUNÇÕES DA PROCURADORIA JURÍDICA

A Procuradoria Jurídica da Câmara de Guaíba, órgão consultivo com previsão no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18, exerce as funções de assessoramento jurídico e de orientação da Mesa Diretora, da Presidência da Casa e dos setores legislativos, através da emissão de pareceres escritos e verbais, bem como de opiniões fundamentadas objetivando a tomada de decisões, por meio de reuniões, de manifestações escritas e de aconselhamentos. Trata-se de órgão público que, embora não detenha competência decisória, orienta juridicamente o gestor público e os setores legislativos, sem caráter vinculante.

Os pareceres jurídicos são atos resultantes do exercício da função consultiva desta Procuradoria Jurídica, no sentido de alertar para eventuais inconformidades que possam estar presentes. Conforme leciona Hely Lopes Meirelles na obra Direito Administrativo Brasileiro, 41ª ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2015, p. 204, “O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva”.

Desse modo, a função consultiva desempenhada por esta Procuradoria com base no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18 – que dispõe sobre a organização administrativa da Câmara Municipal de Guaíba – não é vinculante, motivo pelo qual é possível, se for o caso, que os agentes políticos formem suas próprias convicções em discordância com as opiniões manifestadas por meio do parecer jurídico.

3. MÉRITO

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende aprovar se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque o Projeto de Lei nº 031/2020 estabelece a instituição de um fundo especial e temporário destinado à arrecadação de recursos para o combate à Covid-19 no estrito âmbito local, o que vai ao encontro da competência legislativa do art. 30, inciso I, da CF/88 e do art. 6º da Lei Orgânica Municipal (LOM).

Quanto aos aspectos materiais da proposta legislativa, vê-se que busca instituir um fundo especial para a arrecadação de recursos de uso exclusivo da Secretaria Municipal de Saúde, da Secretaria Municipal de Assistência Social e da Secretaria Municipal do Trabalho, para a realização de ações de combate à Covid-19 e seus efeitos no Município.

De acordo com Heleno Taveira Torres, “(...) os fundos especiais propõem-se como medida de alocação legal de recursos, orçamentários ou não, sob a forma de patrimônio separado vinculado ao emprego em certos fins, ao atendimento de necessidades públicas ou como complementação financeira para a prestação de serviços públicos disponíveis, a partir de uma entidade ou órgão público dotado de administração financeira e contábil autônoma, ou mesmo desprovido de tal autonomia[1].

Nesse sentido, a Lei Federal nº 4.320/64 especifica as exigências para a organização dos fundos especiais. Prevê o artigo 71 que “Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.” Veja-se, portanto, que os recursos a serem alocados nos fundos especiais devem estar atrelados à execução de objetos específicos já determinados na proposta. A respeito disso, o Projeto de Lei nº 031/2020 estabelece, especialmente no artigo 1º, que o pretendido fundo será destinado à execução de ações de combate à Covid-19 e seus efeitos no Município de Guaíba.

O artigo 72 da Lei nº 4.320/64 prevê que “A aplicação das receitas orçamentárias vinculadas a fundos especiais far-se-á através de dotação consignada na Lei de Orçamento ou em créditos adicionais.” O artigo 73, por sua vez, estabelece: “Salvo determinação em contrário da lei que o instituiu, o saldo positivo do fundo especial apurado em balanço será transferido para o exercício seguinte, a crédito do mesmo fundo”. O artigo 74, por fim, consigna que “A lei que instituir o fundo especial poderá determinar normas peculiares de controle, prestação e tomada de contas, sem de qualquer modo elidir a competência específica do Tribunal de Contas ou órgão equivalente”.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 031/2020, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do artigo 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder.

Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo. Vejam-se as referidas normas constantes nos textos constitucionais:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Art. 60 - São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Além disso, veja-se o que dispõem os artigos 52 e 119 da Lei Orgânica Municipal sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Da análise da proposta, observa-se que o pretendido fundo especial, ao ser constituído, ficaria sob a gerência e a administração do Poder Executivo (art. 3º), o que, consequentemente, torna reservada ao chefe daquele poder a iniciativa para a sua criação.

Em interessante material produzido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal, intitulado “A insustentável incerteza do dever-ser: reserva de iniciativa de leis, jurisprudência oscilante e a criação de fundos orçamentários”[2], construiu-se um estudo específico a respeito de eventuais reservas de iniciativa legislativa  existentes para a criação de fundos especiais na Administração Pública.

Em síntese, a pesquisa constatou que a jurisprudência do STF vem considerando que a criação de fundos especiais não é, em todos os casos, medida sob a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Executivo. Na realidade, não há qualquer vedação constitucional à criação de tais fundos no orçamento de outros poderes ou mesmo de órgãos constitucionalmente autônomos, porquanto a matéria orçamentária não é, genericamente, da alçada exclusiva do Poder Executivo, com exceção do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual (art. 165, incisos I, II e III, da CF/88). O que vincula a criação de fundos especiais a uma reserva de iniciativa legislativa é o fato de que eles devem ser geridos e administrados por uma entidade ou órgão público com expertise, necessariamente criando novas atribuições e responsabilidades à estrutura administrativa, afetando-a em termos de sua organização hierárquica e funcional.

Nesses termos, seria possível ao Poder Legislativo apenas criar, por iniciativa parlamentar, um fundo especial que viesse a ser administrado por ele próprio, através de seus órgãos e servidores públicos, estando essa medida ainda circunscrita à reserva de iniciativa da Mesa Diretora. Lado contrário, a Constituição Federal de 1988 não viabiliza a criação de tais fundos por iniciativa parlamentar quando as funções de administração sejam conferidas à estrutura administrativa de outras entidades ou órgãos públicos, como ao Poder Executivo. Confira-se a análise do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado:

Ademais, nem todo fundo financeiro integra o orçamento de órgão do Poder Executivo. Embora seja esperado, em virtude das funções tipicamente atribuídas a esse Poder, que a maior parte dos fundos esteja sob sua administração, a Constituição não veda a instituição de fundos no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário. Integra o orçamento da Câmara dos Deputados, por exemplo, o fundo rotativo constituído por recursos próprios (como as receitas de aluguéis, taxas de ocupação, multas, alienação de bens). Em diversos Estados, foram criados fundos de reaparelhamento da Justiça, administrados pelo Tribunal de Justiça. Entender que haveria reserva de iniciativa em favor do Chefe do Poder Executivo nesses casos seria ilógico e atentatório à autonomia financeira dos outros Poderes.

(...)

Pode-se extrair desse aresto que a criação de fundos no âmbito de um Poder guarda relação com a sua autonomia administrativa e financeira, que reclama a incidência, em tal hipótese, da prerrogativa desse mesmo Poder de iniciar o processo legislativo sobre matérias legislativas referentes à sua própria organização. Essa ideia se coaduna com os antes descritos traços característicos de um fundo financeiro. Se os fundos estão necessariamente vinculados a um órgão da Administração e se destinam à realização de determinados objetivos e serviços, não há como negar que a criação de fundo implica a atribuição de competências ao órgão que o administra. Como corolário, e tendo em vista a jurisprudência prevalente no STF, a criação de fundo gerido por órgão do Poder Executivo submete-se à reserva de iniciativa prevista no art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal.

(...)

A se julgar pela lógica que presidiu a decisão do STF na ADIMC nº 2.123, não seria viável lei de autoria parlamentar que criasse fundo administrado por órgão do Poder Executivo nem mesmo quando se destinasse simplesmente a fornecer recursos para atividades cuja realização já constituísse competência do órgão (fixada em lei de autoria daquele mesmo Poder). Dito de outro modo, e diferentemente da exegese de que cogitamos ao comentarmos a ADI nº 3.394, a inconstitucionalidade por vício de iniciativa não se configuraria apenas no caso de a lei instituidora do fundo criar novas atribuições materiais e finalísticas para o órgão incumbido de administrá-lo (como uma lei que crie programa de incentivo ao esporte amador financiado por fundo a ser administrado pelo Ministério do Esporte), mas se verificaria pelo simples fato de a criação do fundo importar alterações na organização administrativa do Poder Executivo (e, em consequência, o estabelecimento de incumbências acessórias ou instrumentais para o órgão, advindas da própria existência do fundo e do dever de geri-lo).

Percebe-se, então, que a criação de fundos especiais, embora juridicamente possível em esferas outras além do Poder Executivo, está sob a iniciativa legislativa reservada da entidade ou do órgão constitucionalmente autônomo com competência para geri-lo, já que a instituição desse fundo acarreta ao seu responsável uma série de incumbências acessórias e instrumentais que consubstanciam uma intervenção na sua organização.

Desse modo, a instituição do Fundo Emergencial de Combate à Covid-19 – FECC, tal como desenhada no Projeto de Lei nº 031/2020, só poderia ter sido proposta pelo Chefe do Executivo Municipal (Prefeito), diante do fato de que seriam da responsabilidade daquela esfera a administração, a gestão, a arrecadação e a aplicação de recursos obtidos, bem como a prestação de contas à sociedade e aos órgãos de controle interno e externo competentes. Por tal motivo, tem-se presente, na proposta legislativa, a inconstitucionalidade formal por vício na iniciativa, recomendando-se a remessa de indicação ao Poder Executivo.

[1] Fundos especiais para prestação de serviços públicos e os limites da competência reservada em matéria financeira. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TORRES, Heleno Taveira. Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.

[2] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td231>.

4. Conclusão

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe – Projeto de Lei nº 031/2020, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, “e”, da CF/88; art. 60, II, “d”, da CE/RS), bem como por afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Nada impede, contudo, que seja remetida uma indicação ao Poder Executivo, sugerindo-se a propositura do projeto pelo Prefeito, na forma do art. 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 6 de maio de 2020.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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