PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a proibição de vereadores, assessores e outros agentes políticos intermediarem a realização de consultas, exames, intervenções cirúrgicas e quaisquer outros procedimentos junto à Secretaria Municipal de Saúde, e da outras providências" 1. RelatórioA Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 007/20 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a proibição de vereadores, assessores e outros agentes políticos intermediarem a realização de consultas, exames, intervenções cirúrgicas e quaisquer outros procedimentos junto à Secretaria Municipal de Saúde. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pelo Presidente da Câmara para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno. A proponente apresentou substitutivo, que foi juntado ao processo legislativo para análise por esta Procuradoria Jurídica. 2. MÉRITOO artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida pretendida por meio do Projeto de Lei nº 007/2020 se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (art. 23, inc. I, da CF/88), não atrelada às competências legislativas privativas da União (art. 22 da CF/88), a proposta estabelece expressamente, na legislação municipal, um instrumento de concretização dos princípios constitucionais afetos à Administração Pública, mormente os da moralidade e da impessoalidade (art. 37, “caput”, da CF/88). Quanto à matéria de fundo, não há qualquer violação ao conteúdo material da CF/88 e da CE/RS. A proposta é materialmente compatível com a disciplina constitucional dos princípios da Administração Pública, os quais estão previstos genericamente no art. 37, “caput”, da CF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. Na Constituição Estadual Gaúcha, por sua vez, os princípios da moralidade e da impessoalidade estão consagrados no art. 19, “caput”, nos seguintes termos: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação e o seguinte”. Por fim, impossível deixar de recordar que o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração Pública e a influência do poder econômico no processo eleitoral são fenômenos severamente condenados pela CF/88, a qual, ao tratar dos direitos políticos no art. 14, prevê que lei complementar federal estabelecerá causas de inelegibilidade a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade, a normalidade e a legitimidade do sufrágio, instituindo, entre outros instrumentos, a ação de impugnação de mandato eletivo:
Assim, não há dúvidas de que possuem respaldo constitucional as medidas políticas que, de algum modo, venham a disciplinar condutas vedadas por agentes políticos e servidores ligados por vínculo de confiança nos estritos limites locais, visando à maximização e concretização dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade. Sob os aspectos da competência legislativa e da matéria, não se vê, portanto, a existência de obstáculos à tramitação da proposta. Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste procurador sobre a matéria, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado. A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente. Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro. Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:
Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:
O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF/88, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148). O artigo 61, § 1º, da CF/88, assim como o artigo 60 da CE/RS não preveem restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo conduta vedada a agentes políticos no que diz respeito ao funcionamento do sistema de saúde. A proposição não disciplina a criação ou aumento de cargos, funções ou empregos; não trata especificamente do regime jurídico de servidores; muito menos se refere à instituição, estruturação ou atribuições de órgãos municipais ligados à estrutura do Poder Executivo. Na realidade, a proposta objetiva prever expressamente na legislação municipal a proibição de conduta que também encontra correspondência em outros diplomas normativos, tais como na Lei de Improbidade Administrativa (art. 11), no Código Penal (art. 317), no Código Eleitoral (art. 299) e no Decreto-Lei nº 201/1967 (art. 7º, inciso I), de forma a maximizar e aperfeiçoar a aplicação dos princípios da moralidade e da impessoalidade (art. 37, “caput”, da CF/88). A propósito, em situação próxima quanto aos fins, o STF já decidiu, ainda no ano de 2014, que leis que tratem da vedação do nepotismo na Administração Pública não são de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, ainda que digam respeito a relações de parentesco com o Prefeito e Vice-Prefeito. Leia-se o resumo da notícia divulgada no sítio eletrônico:
Como se percebe, o STF julgou constitucional a lei municipal que veda nepotismo por considerar, inclusive, que seria desnecessária a edição dessa norma, já que a proibição deriva diretamente dos princípios do art. 37 da CF/88. Por essa razão, não haveria reserva de iniciativa ao Chefe do Executivo. Em termos semelhantes, a proposição em análise busca reproduzir, na legislação municipal, conduta que já é vedada por força direta dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade (art. 37, “caput”, da CF/88), sendo aplicável o mesmo raciocínio do precedente apresentado: por não ser estritamente necessária a edição de lei para vedar a interferência ou intermediação de agentes políticos e assessores no agendamento de consultas, exames, intervenções cirúrgicas e outros procedimentos na Secretaria Municipal de Saúde – já sendo tal conduta vedada pela força normativa da CF/88 –, não há reserva de iniciativa para a norma legal que evidencie a concretude dos princípios constitucionais e fixe hipóteses que, inquestionavelmente, configurem comportamentos imorais. O mero fato de a norma também se destinar a agentes políticos do Poder Executivo não contamina a proposta de vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que, como foi visto, as hipóteses de reserva de iniciativa previstas na CF/88 e na CE/RS não admitem interpretação ampliativa, por consistirem em exceções à regra geral da iniciativa concorrente. Caso se admitisse interpretação tão rígida, o Legislativo ficaria, basicamente, de mãos amarradas, impedido de exercer uma de suas funções típicas. Obviamente, não é esse o interesse da Constituição, que apenas limita os casos de iniciativa nas hipóteses em que evidentemente houver usurpação da independência e harmonia dos demais poderes. Quanto a esse aspecto, traz-se excerto de acórdão do TJRS (ADI nº 70072679236):
Portanto, considerando todos os fundamentos e precedentes apresentados, com destaque para o Recurso Extraordinário nº 570.392, julgado pelo STF em 2014, que declarou a inexistência de reserva de iniciativa para leis municipais que vedem a prática do nepotismo no âmbito da Administração Pública, por interpretação compatível com a proposta em análise, tem-se que o PL nº 007/2020, de autoria parlamentar, é viável juridicamente. [1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>. 3. ConclusãoDiante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do substitutivo ao Projeto de Lei nº 007/20, por inexistirem vícios flagrantes de natureza material ou formal que impeçam a deliberação em Plenário. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 19 de fevereiro de 2020. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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