Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 017/2020
PROPONENTE : Ver. Alex Medeiros
     
PARECER : Nº 041/2020
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Altera o artigo 17 da Lei Municipal nº 1.027/1990 – Código de Posturas do Município"

1. Relatório

O Vereador Alex Medeiros apresentou o Projeto de Lei nº 017/2020 à Câmara Municipal, objetivando alterar o art. 17 da Lei Municipal nº 1.027/1990 – Código de Posturas. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno.

2. MÉRITO

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A auto-organização dos Municípios está disciplinada, originariamente, no artigo 29, caput, da Constituição Federal, que prevê: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos”.

O autogoverno se expressa na existência de representantes próprios dos Poderes Executivo e Legislativo em âmbito municipal – Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores –, que são eleitos diretamente pelo povo. A autoadministração e a autolegislação contemplam o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na CF/88. A respeito da autoadministração e da autolegislação, transcreve-se o artigo 30 da Constituição Federal, que enumera as competências materiais e legislativas dos Municípios:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Veja-se que, entre as competências legislativas municipais, encontra-se o poder de legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber. Tal função deve ser exercida nos termos e nos limites da CF/88, visando a estabelecer normas específicas, de acordo com a conjuntura municipal, e a complementar a legislação já existente em âmbito federal e estadual para adequar a aplicação na esfera local.

Nesse sentido, de acordo com Pedro Lenza (2012, p. 449), com relação às competências legislativas dos Municípios, especificamente sobre a competência suplementar, o artigo 30, II, da CF “estabelece competir aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. ‘No que couber’ norteia a atuação municipal, balizando-a dentro do interesse local. Observar ainda que tal competência se aplica, também, às matérias do art. 24, suplementando as normas gerais e específicas, juntamente com outras que digam respeito ao peculiar interesse daquela localidade”.

Assim, não há dúvidas de que ao Município se conferem diversas possibilidades no que diz respeito à atividade legislativa, estando este legitimado a legislar sobre assuntos diversos de interesse local e a suplementar a legislação federal e estadual no que couber, desde que a matéria não adentre o rol de competências privativas da União (art. 22 da CF).

No caso em tela, a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, no artigo 13, já estabelece um rol de competências deferidas aos Municípios, entre as quais está a de “exercer o poder de polícia administrativa nas matérias de interesse local, tais como proteção à saúde, aí incluídas a vigilância e a fiscalização sanitárias, e proteção ao meio-ambiente, ao sossego, à higiene e à funcionalidade, bem como dispor sobre as penalidades por infração às leis e regulamentos locais.” (inciso I).

Ainda, cabe referir que a Lei Orgânica do Município de Guaíba, no artigo 119, não faz reserva alguma de iniciativa ao Poder Executivo quanto à matéria aqui tratada, tratando-se, portanto, de iniciativa comum, na forma do artigo 38, in verbis: “A iniciativa das Leis Municipais, salvo nos casos de competência exclusiva, cabe a qualquer Vereador, Comissão Permanente da Câmara, ao Prefeito ou ao eleitorado”.

Também é relevante a observância das normas previstas na Constituição Estadual quanto à iniciativa, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por vereador sobre a matéria tratada, já que, com base nos fundamentos acima expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva.

No que concerne aos aspectos materiais do Projeto de Lei nº 017/2020, tem-se que propõe regular o exercício do poder de polícia administrativa em âmbito local, impondo a notificação prévia da parte interessada antes da aplicação de penalidades previstas no Código de Posturas, com exceção dos casos que apresentem risco ou que exijam a aplicação imediata de penalidade ou medida. Segundo o art. 78, caput, do Código Tributário Nacional,

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que “o poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.” (Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 134). Percebe-se, portanto, que o poder de polícia é uma prerrogativa própria de Estado que limita ou condiciona o exercício de liberdades individuais tendo por objetivo atender ao interesse público no que se relaciona à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Conforme a doutrina clássica, são características do poder de polícia a discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade. A autoexecutoriedade revela o poder que a Administração Pública tem de fazer cumprir as suas decisões decorrentes do poder de polícia, impondo-as coativamente e as executando de modo direto, sem precisar recorrer às instâncias do Poder Judiciário. A coercibilidade, por sua vez, é a nota de imposição do poder de polícia, que garante ao Estado a possibilidade de forçar o cumprimento da determinação, mesmo contra a vontade do particular. A discricionariedade é a margem de liberdade conferida pela lei para que o agente público, por critérios de conveniência e oportunidade, adote a medida mais adequada ao caso entre as alternativas possíveis. Ainda de acordo com Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro. 36 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 136),

Ao conceituarmos o poder de polícia como faculdade discricionária não estamos reconhecendo à Administração qualquer poder arbitrário. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Discricionariedade é liberdade de agir dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação fora ou excedente da lei, com abuso ou desvio de poder. O ato discricionário, quando se atém aos critérios legais, é legítimo e válido; o ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido; nulo, portanto.

Sendo o poder de polícia uma faculdade discricionária por natureza, poderia se entender, à primeira vista, que a proposta obstaculizaria o juízo de conveniência e oportunidade do agente público ao obrigá-lo a notificar previamente o administrado antes de aplicar qualquer das penalidades previstas na legislação. Ocorre, porém, que a redação do pretendido dispositivo preserva a discricionariedade do poder de polícia, visto que, havendo situação de risco que exija a aplicação imediata de providência ou penalidade, poderá o agente público tomar as medidas cabíveis para limitar a atividade prejudicial ao interesse público.

Tal solução de preservar a possibilidade de o agente aplicar providência ou penalidade imediatamente, havendo situação de risco, preserva em maior grau a discricionariedade do poder de polícia, sem limitá-la desproporcionalmente, resguardando, ainda, o interesse dos administrados de exercer atividades econômicas, faculdade que tem abrigo constitucional nos princípios que orientam a ordem econômica e financeira (art. 170 da CF/88).

Ademais, vale lembrar que a recente Lei nº 13.874/19, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece princípios e regras de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, apresentando disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador. São princípios expressos do diploma legal:

Art. 2º (...)

I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;

II - a boa-fé do particular perante o poder público;

III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e

IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.

Desse modo, tem-se que, especialmente após a edição da referida Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, houve uma mudança de paradigma na definição do papel do Estado enquanto agente normativo e regulador da ordem econômica e financeira, vindo a proposição ora em análise a concretizar uma maior harmonização entre os interesses primário e dos administrados quanto ao exercício de atividades econômicas, na linha de orientação do mencionado diploma. Evidentemente, a proposição preserva tanto o interesse público quanto o particular, na medida em que prevê a notificação prévia do administrado para as situações não urgentes e que não exijam a aplicação imediata de medida mais drástica ou de penalidade administrativa, oportunizando-lhe o ajuste de sua atividade às normas legais, mas não retirando o poder de aplicar penalidades imediatas na hipótese de situações graves e que apresentem risco a outros bens jurídicos igualmente relevantes.

Por fim, tratando-se de alteração no Código de Posturas, que possui natureza jurídica de lei complementar (art. 46, II, da LOM), salienta-se que deverá ser respeitado o disposto no art. 46, § 1º, da LOM, no sentido de que sejam garantidas a ampla divulgação e a realização de consulta pública para o recebimento de sugestões, o que constitui, evidentemente, etapa necessária à validade jurídica do processo legislativo.

3. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei nº 017/2020. Ressalta-se que, por se tratar de alteração no Código de Posturas, que tem natureza jurídica de lei complementar (art. 46, II, da LOM), deverá ser respeitado o disposto no art. 46, § 1º, da LOM, no sentido de que sejam garantidas a ampla divulgação e a realização de consulta pública para o recebimento de sugestões, o que constitui etapa necessária à validade jurídica do processo legislativo.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 17 de fevereiro de 2020.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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