Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Executivo n.º 053/2019
PROPONENTE : Executivo Municipal
     
PARECER : Nº 329/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Altera o Inciso III do Artigo 4º da Lei Municipal n.º 2931, de 05 de setembro de 2012, e dá outras providências"

1. Relatório

O Executivo Municipal apresentou o Projeto de Lei nº 053/19 à Câmara Municipal, objetivando alterar o inciso III do art. 4º da Lei Municipal nº 2.931, de 5 de setembro de 2012. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno.

2. FUNÇÕES DA PROCURADORIA JURÍDICA

A Procuradoria Jurídica da Câmara de Guaíba, órgão consultivo com previsão no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18, exerce as funções de assessoramento jurídico e de orientação da Mesa Diretora, da Presidência da Casa e dos setores legislativos, através da emissão de pareceres escritos e verbais, bem como de opiniões fundamentadas objetivando a tomada de decisões, por meio de reuniões, de manifestações escritas e de aconselhamentos. Trata-se de órgão público que, embora não detenha competência decisória, orienta juridicamente o gestor público e os setores legislativos, sem caráter vinculante.

Os pareceres jurídicos são atos resultantes do exercício da função consultiva, no sentido de alertar para inconformidades que possam estar presentes. Conforme Hely Lopes Meirelles na obra Direito Administrativo Brasileiro, 41ª ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2015, p. 204, “O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva”.

Desse modo, a função consultiva desempenhada por esta Procuradoria com base no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18 não é vinculante, motivo pelo qual é possível, se for o caso, que os agentes políticos formem suas próprias convicções em discordância com as opiniões manifestadas por meio do parecer jurídico.

3. MÉRITO

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

[...]

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, já que o Projeto de Lei nº 053/19 objetiva alterar a regulamentação do transporte coletivo municipal para possibilitar que o Município contrate, alternativamente à concessão regida pela Lei nº 8.987/95, a prestação de serviços na forma da Lei nº 8.666/93.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o art. 125, § 2º, da CF/88 e o art. 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública. 

Embora não haja, especificamente, previsão da reserva de iniciativa no art. 60 da Constituição Estadual para tratar de serviços públicos, certo é que tal medida está sob a reserva de administração do Chefe do Executivo, consubstanciada no princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, cabendo exclusivamente ao Prefeito regulamentar a forma de prestação do serviço público.

Em relação aos aspectos materiais da proposição, importante registrar algumas considerações. O Projeto de Lei nº 053/2019 busca alterar a regulamentação do transporte coletivo municipal para possibilitar que o Município contrate, alternativamente à concessão regida pela Lei nº 8.987/95, a prestação de serviços na forma da Lei nº 8.666/93, com gratuidade aos usuários das linhas rurais.

Ocorre que, à luz das disposições constitucionais sobre serviços públicos, não se mostra possível a contratação sob o regime exclusivo da Lei nº 8.666/1993. Isso porque, segundo o inciso V do art. 30 da CF/88, já citado em momento anterior, competem aos Municípios a organização e a prestação dos serviços públicos de interesse local, entre os quais o de transporte coletivo, podendo a execução ser direta ou sob regime de concessão ou permissão. Da mesma forma, o art. 175, “caput”, da CF/88 é claro ao estabelecer que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.

Os contratos regidos exclusivamente pela Lei nº 8.666/93 dizem respeito à prestação de atividades materiais à Administração Pública, que não se confundem com os serviços públicos prestados à população, com princípios e critérios próprios de organização. Conforme explicam Ricardo Alexandre e João de Deus, na obra “Direito Administrativo”, 3. ed., 2017, p. 463-464,

A prestação de serviços é definida pela lei como toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais (art. 6º, II). Como se observa pelo uso da expressão “tais como”, o elenco dos serviços mencionados pela lei é apenas exemplificativo, de forma que também são considerados serviços, entre outros: limpeza urbana, assessorias, consultorias, treinamento de pessoal etc.

Esclarecemos que os contratos de serviços tratados anteriormente são relativos a serviços prestados à Administração. Com efeito, esses contratos não versam sobre a delegação da prestação de serviço público a particulares, o que é feito por meio de contrato administrativo de concessão ou permissão de serviço público, os quais serão estudados detalhadamente em outro capítulo.

Como se percebe, os contratos administrativos regidos pela Lei nº 8.666/93 têm por objetivo a prestação de determinadas atividades materiais à Administração Pública, que não se confundem com os serviços públicos prestados à população, cuja prestação descentralizada ocorre por meio de delegação a particulares, na forma de concessão ou permissão, consoante a regulamentação da Lei nº 8.987/95, ou através de outorga a pessoas jurídicas criadas por lei ou com a autorização de lei.

A CF/88, conforme já mencionado, possibilita a prestação dos serviços públicos diretamente ou por meio de concessão ou permissão. A execução direta tem definição na Lei nº 8.666/93, sendo aquela “que é feita pelos órgãos e entidades da Administração, pelos próprios meios” (art. 6º, VII). A concessão e a permissão de serviços públicos, por sua vez, estão definidas na própria Lei nº 8.987/95:

Art. 2º Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:

[...]

II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;

III - concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado;

IV - permissão de serviço público: a delegação, a título precário, mediante licitação, da prestação de serviços públicos, feita pelo poder concedente à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco.

A delegação da prestação dos serviços públicos, disciplinada pela Lei Federal nº 8.987/1995, submete-se a princípios e a regras próprias que destoam das contratações típicas da Administração Pública regidas pela Lei nº 8.666/1993. Exemplo disso é a previsão das características de serviço adequado e dos direitos e obrigações dos usuários, estabelecidas nos arts. 6º, 7º e 7º-A da Lei nº 8.987/1995, assim reproduzidas:

Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.

§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

Art. 7º Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:

I - receber serviço adequado;

II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos;

III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha, observadas as normas do poder concedente;

III - obter e utilizar o serviço, com liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, observadas as normas do poder concedente. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)

IV - levar ao conhecimento do poder público e da concessionária as irregularidades de que tenham conhecimento, referentes ao serviço prestado;

V - comunicar às autoridades competentes os atos ilícitos praticados pela concessionária na prestação do serviço;

VI - contribuir para a permanência das boas condições dos bens públicos através dos quais lhes são prestados os serviços.

Art. 7º-A As concessionárias de serviços públicos, de direito público e privado, nos Estados e no Distrito Federal, são obrigadas a oferecer ao consumidor e ao usuário, dentro do mês de vencimento, o mínimo de seis datas opcionais para escolherem os dias de vencimento de seus débitos. (Incluído pela Lei nº 9.791, de 1999)

Ainda sobre as formas de prestação de serviços públicos, destacam Ricardo Alexandre e João de Deus, na obra “Direito Administrativo”, 3. ed., 2017, p. 607,

No tocante ao modo de prestação dos serviços públicos, estes podem ser prestados de forma centralizada ou descentralizada.

Quando o serviço público é prestado pela própria pessoa jurídica federativa que detém a sua titularidade, diz-se que o serviço está sendo prestado de forma centralizada. Ocorre que, em várias situações, o ente político titular daquele serviço público, embora mantendo a sua titularidade, transfere a pessoas alheias à sua estrutura administrativa a responsabilidade pela prestação, hipótese em que o serviço passa a ser executado de forma descentralizada.

O ente político, mesmo quando transfere a terceiros a responsabilidade pela prestação de serviços públicos, sempre conserva a sua titularidade, o que lhe garante a manutenção, em qualquer caso, da competência para regular e controlar a prestação desses serviços.

A descentralização dos serviços públicos pode ser feita de duas formas: a) por outorga (delegação legal); ou b) por delegação (delegação negocial).

Na descentralização por outorga (também conhecida por delegação legal), o Estado cria uma entidade (autarquia, fundação pública, sociedade de economia mista ou empresa pública) e lhe transfere, por lei, a execução de um serviço público.

Na descentralização por delegação (também conhecida por delegação negocial) o Poder Público transfere por contrato ou ato unilateral a execução do serviço, para que o delegado preste o serviço em seu próprio nome e por sua conta e risco, nas condições previamente estabelecidas e sob controle estatal.

Dessa forma, a prestação do serviço público de transporte coletivo pelo Município de Guaíba pode ocorrer diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, de acordo com o previsto no inciso V do art. 30 e no art. 175 da CF/88. Caso, eventualmente, a justificativa para a opção apresentada no Projeto de Lei nº 053/2019 (contratação de serviços) seja a dificuldade para a atração de investimentos privados sem contrapartida do Poder Público (concessão comum), ou mesmo a carência da população rural para o custeio da tarifa de transporte coletivo, tem-se como possível, em tese, a adoção da modalidade especial “concessão patrocinada”, espécie de parceria público-privada regida pela Lei nº 11.079/04 e cuja definição consta no seu art. 2º, § 1º: “Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado”.

Novamente, Ricardo Alexandre e João de Deus, na obra “Direito Administrativo”, 3. ed., 2017, p. 629, expõem um exemplo de aplicação da concessão patrocinada:

A título de exemplo, poderíamos citar a construção de uma ponte com a previsão de que o concessionário seja remunerado mediante a cobrança de pedágio acrescida de uma contrapartida pelo Poder Público. Esse modelo poderia levar ao questionamento acerca dos motivos da opção, pela Administração, da modalidade PPP para a realização da obra, uma vez que, ao menos em tese, seria possível a remuneração do concessionário exclusivamente pelo pedágio (concessão simples). Entretanto, há casos que, em face dos elevados investimentos necessários para a realização da obra, o valor do pedágio para a amortização dos gastos e remuneração do concessionário tornaria a sistemática inviável, de forma a exigir aportes do poder público. Tem-se, nessas hipóteses, exatamente a situação que indica uma parceria entre o Poder Público e a iniciativa privada (explicando, inclusive, a denominação PPP). Concretamente, foi essa a sistemática adotada pelo Estado de Pernambuco para viabilizar o acesso à Reserva do Paiva, área litorânea na região metropolitana do Recife, cuja urbanização e desenvolvimento eram de interesse do Poder Público, mas dependiam da construção de uma ponte, cujo tráfego inicialmente previsto seria insuficiente para a atração de investimentos privados sem contrapartida do poder público (concessão simples). Foi a primeira Parceria Público-Privada realizada com sucesso no Brasil, demonstrando para os inúmeros críticos do instituto a sua viabilidade para casos semelhantes.

Assim, considerando que o transporte coletivo é um serviço público de interesse local que deve ser executado diretamente ou sob regime de concessão ou permissão (arts. 30, V, e 175, “caput”, da CF/88), na forma da Lei nº 8.987/95, admitindo, inclusive, as chamadas modalidades especiais de concessão (a exemplo da concessão patrocinada – Lei nº 11.079/04), entende-se como juridicamente inviável a opção introduzida no PL nº 053/2019 para a espécie de serviço a que se refere, visto que a contratação de serviços estabelecida exclusivamente na Lei nº 8.666/1993 se refere aos serviços prestados à Administração, e não aos serviços delegados à iniciativa privada.

4. Conclusão

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 053/2019.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 26 de dezembro de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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