PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a saída de alimentos destinados ao consumo humano, por doação, nos estabelecimentos comerciais localizados no Município de Guaíba" 1. Relatório:O Vereador Bosco Ayala apresentou o Projeto de Lei nº 105/2019 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a saída de alimentos destinados ao consumo humano, por doação, nos estabelecimentos comerciais localizados no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno. 2. Parecer:De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros. A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único). A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao DF; as de interesse local, por fim, aos Municípios. No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (art. 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (art. 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (art. 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (arts. 24, § 2º, e 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (art. 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (art. 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios. Em relação à matéria de produção e consumo, a CF/88, de fato, estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (art. 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (art. 24, § 2º). Ocorre que o art. 30, incisos I e II, da CF/88 é claro ao garantir aos Municípios a competência para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para suplementar, no que couber, a legislação federal e a estadual. Nesses termos, a interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências legislativas é a que garante ampla outorga de poderes aos Municípios, que só não podem criar normas que esbarrem na competência privativa do art. 22 da CF, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base no interesse local sobre matérias de competência concorrente, como produção e consumo. Tanto é que, caso não se admitisse aos Municípios a competência para legislar sobre matérias versadas no art. 24 da CF, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários (“proteção e defesa da saúde – art. 24, XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – art. 24, VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – art. 24, I). Veja-se que, na jurisprudência, é acolhido o entendimento da competência legislativa “suplementar complementar” dos Municípios para legislarem sobre matérias versadas no art. 24 da CF/88, desde que no sentido de detalhar regras presentes na legislação federal e estadual, conferindo-lhes maior efetividade:
Portanto, consoante fundamentaram as decisões acima transcritas, em que pese a matéria de produção e consumo esteja presente no art. 24 da CF/88 como uma competência legislativa concorrente da União e dos Estados, não há dúvidas de que os Municípios, no estrito interesse local, podem legislar sobre o tema, atentando para não extrapolar o âmbito local e para não entrar em conflito com normas constitucionais ou infraconstitucionais. No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o art. 125, § 2º, da CF/88 e o art. 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:
Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto de lei por vereador versando sobre a matéria, tendo em vista que os dispositivos constitucionais não estabelecem a reserva de iniciativa para o tema tratado. Sob o aspecto material da proposição, tem-se que andou bem o Projeto de Lei nº 105/19 ao estipular regras sobre a saída de alimentos destinados ao consumo humano para entidades assistenciais públicas ou privadas. Isso porque a alimentação tem status de direito fundamental social, conforme dispõe o art. 6º da CF/88, introduzido pela Emenda Constitucional nº 64/2010, sendo que a marca distintiva dos direitos fundamentais de natureza social é a exigibilidade de prestações positivas materiais contra o Estado no sentido da implementação desses direitos básicos. Em síntese, compete ao Estado (em sentido amplo) a criação e a viabilização de políticas que concretizem, efetivamente, o direito à alimentação de todos. Além disso, destaca-se que a Lei Federal nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, cria o “Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN”, estabelecendo algumas diretrizes acerca de políticas, planos, programas e ações com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada. Dispõe o art. 2º do referido diploma:
Note-se, portanto, que é obrigação primária do Poder Público a efetivação do direito humano e fundamental à alimentação adequada, devendo adotar políticas e ações necessárias para a garantia da segurança alimentar e nutricional da população, inclusive pelo respeito, proteção, monitoramento, fiscalização e avaliação das demais medidas tendentes a efetivá-lo. Nesses termos, a proposta bem atende ao objetivo constante no dispositivo, porquanto faculta e disciplina as ações de colaboração privada para a garantia do direito à alimentação da população, nas condições que especifica. Além disso, segundo o inciso III do art. 4º da Lei Federal nº 11.346/2006, a “promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social”, é abrangida pela segurança alimentar e nutricional de que trata o diploma legislativo, o que também vai ao encontro da proposta em análise, que busca ampliar o acesso à alimentação adequada ao público atendido pelas entidades de assistência social no âmbito municipal. Sob a ótica da legislação estadual, tem-se presente a Lei Estadual nº 11.621/01, que cria o “Programa de Aproveitamento de Alimentos Não Consumidos – PAANC”, também com o propósito de “fomentar a atividade de captação e distribuição de alimentos, diretamente ou por meio de entidades previamente cadastradas, conforme disposto na Lei, às pessoas, grupos ou famílias em estado de vulnerabilidade nutricional” (art. 1º). Tal programa é coordenado pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul e consiste na coleta e distribuição de alimentos por meio de instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos, cadastradas conforme critérios definidos pelo Conselho de Assistência Social do RS. Ocorre que tal diploma está em vias de revogação, já que foi recentemente aprovado, na Assembleia Legislativa, o Projeto de Lei nº 227/2019, de autoria do Deputado Estadual Luiz Marenco, que traz novas regras sobre a doação de excedentes de alimentos e de gêneros alimentícios reutilizáveis a entidades públicas ou privadas com objetivos sociais, dessa vez dispensado o requisito de prévio cadastro, como ainda prevê a Lei Estadual nº 11.621/2001. Destacam-se os principais dispositivos do Projeto de Lei Estadual nº 227/2019, já aprovado na Assembleia Legislativa e em vias de sanção e promulgação:
Assim, em termos gerais, o PL nº 105/2019 é juridicamente viável, uma vez que a matéria está compreendida nas competências legislativas municipais, a iniciativa legislativa é concorrente e a proposição é compatível com o interesse local e com as demais normas existentes em âmbito federal e estadual. Conclusão:Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 105/19, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 3 de dezembro de 2019. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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