Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 105/2019
PROPONENTE : Ver. Bosco Ayala
     
PARECER : Nº 317/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a saída de alimentos destinados ao consumo humano, por doação, nos estabelecimentos comerciais localizados no Município de Guaíba"

1. Relatório:

O Vereador Bosco Ayala apresentou o Projeto de Lei nº 105/2019 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a saída de alimentos destinados ao consumo humano, por doação, nos estabelecimentos comerciais localizados no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno.

2. Parecer:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao DF; as de interesse local, por fim, aos Municípios.

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (art. 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (art. 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (art. 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (arts. 24, § 2º, e 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (art. 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (art. 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

Em relação à matéria de produção e consumo, a CF/88, de fato, estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (art. 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (art. 24, § 2º). Ocorre que o art. 30, incisos I e II, da CF/88 é claro ao garantir aos Municípios a competência para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para suplementar, no que couber, a legislação federal e a estadual. Nesses termos, a interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências legislativas é a que garante ampla outorga de poderes aos Municípios, que só não podem criar normas que esbarrem na competência privativa do art. 22 da CF, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base no interesse local sobre matérias de competência concorrente, como produção e consumo. Tanto é que, caso não se admitisse aos Municípios a competência para legislar sobre matérias versadas no art. 24 da CF, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários (“proteção e defesa da saúde – art. 24, XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – art. 24, VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – art. 24, I).

Veja-se que, na jurisprudência, é acolhido o entendimento da competência legislativa “suplementar complementar” dos Municípios para legislarem sobre matérias versadas no art. 24 da CF/88, desde que no sentido de detalhar regras presentes na legislação federal e estadual, conferindo-lhes maior efetividade:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI 10.432/12 DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE - PROIBIÇÃO DE VENDA DE CIGARROS AVULSOS - MATÉRIA DE INTERESSE LOCAL - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. - Embora a competência para legislar sobre produção e consumo seja concorrente entre a União e os Estados, assegura-se ao Município competência para suplementar a legislação federal e estadual no que couber e legislar sobre assuntos de interesse local, nos termos do artigo 30, da CF e artigos 10 e 169, da Constituição Estadual. - Inexiste inconstitucionalidade na Lei 10.432/12, do Município de Belo Horizonte, ao dispor sobre a proibição da venda de cigarros avulsos, por se tratar de questão afeta a direito do consumidor, de nítido interesse local, e por não haver conflito com a legislação federal. - Improcedência da representação. V.V. (TJ-MG - Ação Direta Inconst: 10000120699962000 MG, Relator: Heloisa Combat, Data de Julgamento: 10/04/2013, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 17/05/2013).

DIREITO CONSTITUCIONAL. REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 5.555/13 DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR MUNICIPAL. ALCANCE. ART. 358, II, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. INOCORRÊNCIA DE AGRESSÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. CONSTITUCIONALIDADE DO ATO LEGISLATIVO. Representação por inconstitucionalidade da Lei 5.555, de 14.3.13, do Município do Rio de Janeiro, que obriga a exposição de cartaz de advertência sobre acidentes pelos estabelecimentos que comercializarem álcool líquido. 1. Decorre da competência legislativa municipal suplementar (CRFB, art. 30, II, e CERJ, art. 358, II) Município editar lei que suplemente, no que couber, atos legislativos da competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, logo, daquela e do Estado do Rio de Janeiro, sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e sobre previdência social, proteção e defesa da saúde (incisos VIII e XII dos arts. 24 e 74, respectivamente das Constituições da República e fluminense); precedentes do STF. 2. Basta interesse também local, não uma especificidade municipal, para que Município possa exercer competência legislativa suplementar; o descabimento só se configura quando a lei municipal dispõe mais do que a ordem normativa a ser por ela suplementada ou quando a lei do Município entra em conflito com o ordenamento constitucional e/ou infraconstitucional federal e/ou estadual. [...] 6. Representação que se julga improcedente. (TJ-RJ - ADI: 00527701420138190000 RJ 0052770-14.2013.8.19.0000, Relator: DES. FERNANDO FOCH DE LEMOS ARIGONY DA SILVA, Data de Julgamento: 05/05/2014, OE - SECRETARIA DO TRIBUNAL PLENO E ORGAO ESPECIAL, Data de Publicação: 10/06/2014 11:07).

Portanto, consoante fundamentaram as decisões acima transcritas, em que pese a matéria de produção e consumo esteja presente no art. 24 da CF/88 como uma competência legislativa concorrente da União e dos Estados, não há dúvidas de que os Municípios, no estrito interesse local, podem legislar sobre o tema, atentando para não extrapolar o âmbito local e para não entrar em conflito com normas constitucionais ou infraconstitucionais.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o art. 125, § 2º, da CF/88 e o art. 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto de lei por vereador versando sobre a matéria, tendo em vista que os dispositivos constitucionais não estabelecem a reserva de iniciativa para o tema tratado.

Sob o aspecto material da proposição, tem-se que andou bem o Projeto de Lei nº 105/19 ao estipular regras sobre a saída de alimentos destinados ao consumo humano para entidades assistenciais públicas ou privadas. Isso porque a alimentação tem status de direito fundamental social, conforme dispõe o art. 6º da CF/88, introduzido pela Emenda Constitucional nº 64/2010, sendo que a marca distintiva dos direitos fundamentais de natureza social é a exigibilidade de prestações positivas materiais contra o Estado no sentido da implementação desses direitos básicos. Em síntese, compete ao Estado (em sentido amplo) a criação e a viabilização de políticas que concretizem, efetivamente, o direito à alimentação de todos.

Além disso, destaca-se que a Lei Federal nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, cria o “Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN”, estabelecendo algumas diretrizes acerca de políticas, planos, programas e ações com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada. Dispõe o art. 2º do referido diploma:

Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

§ 1º A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais.

§ 2º É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade.

Note-se, portanto, que é obrigação primária do Poder Público a efetivação do direito humano e fundamental à alimentação adequada, devendo adotar políticas e ações necessárias para a garantia da segurança alimentar e nutricional da população, inclusive pelo respeito, proteção, monitoramento, fiscalização e avaliação das demais medidas tendentes a efetivá-lo. Nesses termos, a proposta bem atende ao objetivo constante no dispositivo, porquanto faculta e disciplina as ações de colaboração privada para a garantia do direito à alimentação da população, nas condições que especifica.

Além disso, segundo o inciso III do art. 4º da Lei Federal nº 11.346/2006, a “promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social”, é abrangida pela segurança alimentar e nutricional de que trata o diploma legislativo, o que também vai ao encontro da proposta em análise, que busca ampliar o acesso à alimentação adequada ao público atendido pelas entidades de assistência social no âmbito municipal.

Sob a ótica da legislação estadual, tem-se presente a Lei Estadual nº 11.621/01, que cria o “Programa de Aproveitamento de Alimentos Não Consumidos – PAANC”, também com o propósito de “fomentar a atividade de captação e distribuição de alimentos, diretamente ou por meio de entidades previamente cadastradas, conforme disposto na Lei, às pessoas, grupos ou famílias em estado de vulnerabilidade nutricional” (art. 1º). Tal programa é coordenado pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul e consiste na coleta e distribuição de alimentos por meio de instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos, cadastradas conforme critérios definidos pelo Conselho de Assistência Social do RS. Ocorre que tal diploma está em vias de revogação, já que foi recentemente aprovado, na Assembleia Legislativa, o Projeto de Lei nº 227/2019, de autoria do Deputado Estadual Luiz Marenco, que traz novas regras sobre a doação de excedentes de alimentos e de gêneros alimentícios reutilizáveis a entidades públicas ou privadas com objetivos sociais, dessa vez dispensado o requisito de prévio cadastro, como ainda prevê a Lei Estadual nº 11.621/2001.

Destacam-se os principais dispositivos do Projeto de Lei Estadual nº 227/2019, já aprovado na Assembleia Legislativa e em vias de sanção e promulgação:

Art. 1º Ficam permitidas a doação e a reutilização de gêneros alimentícios e excedentes de alimentos oriundos de cozinhas industriais, buffets, restaurantes, padarias, supermercados, feiras, sacolões, mercados populares, centrais de distribuição e de outros estabelecimentos congêneres.

Parágrafo único. Na manipulação dos gêneros alimentícios e na elaboração dos alimentos de que dispõe esta Lei, deverão ser observadas as Boas Práticas Operacionais e as Boas Práticas de Manipulação de Alimentos e demais programas de qualidade alimentar estabelecidos pela legislação sanitária vigente.

[...]

Art. 3º A doação instituída por esta Lei se dará a título gratuito e será destinada a entidades públicas ou privadas que atendam segmentos populacionais em situação de exclusão ou vulnerabilidade social ou sujeitos à insegurança alimentar e nutricional, como creches, escolas, casas lares, centros de convivência e fortalecimento de vínculos, abrigos para idosos, albergues, casas de apoio, clínicas e comunidades terapêuticas para dependentes químicos, e outras instituições sociais que tenham condições de receber os alimentos.

Art. 4º Em todas as etapas do processo de produção, transporte, armazenamento, distribuição e consumo, as entidades doadoras e receptoras nos termos desta Lei deverão seguir parâmetros e critérios nacionais e internacionais reconhecidamente garantidores da segurança alimentar e nutricional.

Assim, em termos gerais, o PL nº 105/2019 é juridicamente viável, uma vez que a matéria está compreendida nas competências legislativas municipais, a iniciativa legislativa é concorrente e a proposição é compatível com o interesse local e com as demais normas existentes em âmbito federal e estadual.

Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 105/19, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 3 de dezembro de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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