Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 086/2019
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel
     
PARECER : Nº 248/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a criação do Dia Municipal do Projeto “QUEBRANDO O SILÊNCIO” da Igreja Adventista do Sétimo Dia, no município de Guaiba, e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Miguel Crizel apresentou o Projeto de Lei nº 086/19 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a criação do Dia Municipal do Projeto “Quebrando o Silêncio”, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria para exame prévio de admissibilidade, com base no art. 105 do RI.

2. Parecer:

Quanto à competência, não há qualquer óbice à proposta. Conforme dispõe o artigo 30, I, da Constituição Federal de 1988, “Compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local.” No mesmo sentido, o artigo 6º, I, da Lei Orgânica do Município de Guaíba refere que “Ao Município compete prover a tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe privativamente, dentre outras, as seguintes atribuições: legislar sobre assunto de interesse local”.

O Projeto de Lei nº 086/2019 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, na medida em que institui, no Município de Guaíba, o Dia Municipal do Projeto “Quebrando o Silêncio”. A fixação de datas comemorativas em âmbito municipal atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade, incentivando o debate e a reflexão.

A respeito de eventual afronta ao princípio da laicidade da República Federativa do Brasil, previsto no artigo 19 da Constituição Federal de 1988, que veda ao Estado praticar atos de fundo religioso, promovendo e incentivando determinados cultos em detrimento dos demais, deve-se fazer um esclarecimento importante: os conceitos de laicidade e laicismo não se confundem. O primeiro é a característica de determinados Estados adotarem uma posição de neutralidade em relação às manifestações religiosas, ou seja, embora estejam proibidos de subvencionar financeiramente os atos religiosos, devem respeitá-los em função da liberdade de crença. O segundo conceito, mais radical, legitima posturas de intolerância pelo Estado, que enxerga as manifestações religiosas de forma negativa, proibindo-as.

A República Federativa do Brasil, alinhada à teoria dos direitos fundamentais de primeira dimensão, é neutra em relação aos atos religiosos, não adotando religião oficial, porém não vedando que se realizem essas manifestações. Resumidamente, nos termos do artigo 5º, VI, da CF, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Portanto, a laicidade do Estado brasileiro não se confunde com laicismo, não havendo qualquer óbice à realização de atos religiosos. O limite da garantia da liberdade religiosa pelo Estado encontra previsão no artigo 19, I, da CF, o qual estabelece ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.” Veda-se, assim, a aplicação de recursos públicos para a promoção de atos religiosos, ressalvado o caso de colaboração de interesse público, mas não há proibição a que se institua mera data comemorativa em âmbito local, desde que não sejam impostos encargos ao Poder Público, que adota posição inerte quanto aos atos religiosos.

A laicidade da República Federativa do Brasil – que, como visto, nada tem a ver com intolerância religiosa – convive harmoniosamente com outros dispositivos constitucionais que se referem à religião. Inicialmente, o preâmbulo invoca a proteção de Deus para a promulgação da Constituição Federal. O artigo 5º, nos incisos VI, VII e VIII, por sua vez, assegura a liberdade de crença, a prestação de assistência religiosa nas entidades de internação coletiva e a vedação à privação de direitos por motivo de crença religiosa. O artigo 143, nos § 1º e § 2º, estabelece isenção do serviço militar obrigatório em tempo de paz aos eclesiásticos e a obrigatoriedade de atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, alegarem “imperativo de consciência”, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.

Além disso, o artigo 150, VI, “b”, como forma de garantir a liberdade de crença, assegurou imunidade tributária de impostos aos templos de qualquer culto. O artigo 210, por sua vez, prevê o ensino religioso como disciplina de matrícula facultativa e o artigo 226, § 2º, afirma a produção de efeitos civis ao casamento religioso.

Deve-se lembrar, ainda, que o artigo 23, III, da CF/88 prevê a competência material comum entre todos os entes federados para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”.

É inegável que a formação cultural do povo brasileiro e de praticamente todas as comunidades em âmbito internacional sofreu forte influência religiosa, tratando-se de um fruto do processo histórico de constituição dos povos. Todavia, percebe-se que, muito embora o projeto “Quebrando o Silêncio” seja idealizado e desenvolvido por uma igreja, possui um caráter marcadamente educativo e civilizatório, no sentido de orientar as pessoas sobre como agir em situações de violência doméstica, de abuso e exploração, buscando, ainda, “propagar a harmonia e a paz”. Não envolve, portanto, a prática propriamente religiosa, nem mesmo de proselitismo religioso.

Desse modo, não se notam obstáculos para que sejam reconhecidas, como datas comemorativas, manifestações ou projetos que, apesar de possuírem alguma ligação religiosa, façam parte da identidade cultural e do processo de educação civilizatória do povo brasileiro, independentemente da religião a que se refiram, desde que não haja subvenção desses atos pelo Estado ou ordem para que os eventos sejam realizados ou subsidiados pelo Poder Público, considerando a vedação do artigo 19, I, da CF/88.

Ademais, o art. 3º cria permissão ao Poder Executivo para auxiliar a realização dos eventos, caso seja solicitado. As disposições de natureza meramente autorizativa têm por finalidade contornar a limitação constitucional da iniciativa (art. 61, § 1º, da CF e art. 60 da CE/RS) para evitar a configuração de inconstitucionalidade formal, o que, entretanto, não tem essa aptidão.

Inclusive, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, é recorrente o entendimento de que projetos de lei com disposições autorizativas são inconstitucionais, tendo sido editada, em 1994, a Súmula de Jurisprudência nº 1, nos seguintes termos: “Projeto de lei, de autoria de Deputado ou Senador, que autoriza o Poder Executivo a tomar determinada providência, que é de sua competência exclusiva, é inconstitucional.” Na esfera da Comissão de Educação e Cultura e da Comissão de Finanças e Tributação, também já há precedentes e recomendações no sentido de rejeitar projetos de lei meramente autorizativos, por ainda assim violarem a regra de reserva de iniciativa.

Além do mais, é preciso destacar a falta de juridicidade nos projetos de lei simplesmente autorizativos. Para melhor esclarecer essa questão, registra-se a lição de Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, 27. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 163):

Lei, no sentido técnico desta palavra, só existe quando a norma escrita é constitutiva de direito, ou, esclarecendo melhor, quando ela introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas. (...) Nesse quadro, somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no Direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito.

Ou seja, a lei é, necessariamente, um instrumento de constituição de direitos ou de obrigações, sendo incompatível com a sua natureza a positivação de meras faculdades ou possibilidades, que acabam não tendo qualquer juridicidade. A lei, enquanto norma genérica, abstrata, imperativa e coercitiva, não admite simples concessões.

Conforme Márcio Silva Fernandes, titular do cargo de Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, no estudo “Inconstitucionalidade de projetos de lei autorizativos”,

O projeto autorizativo nada acrescenta ao ordenamento jurídico, pois não possui caráter obrigatório para aquele a quem é dirigido. Apenas autoriza o Poder Executivo a fazer aquilo que já lhe compete fazer, mas não atribui dever ao Poder Executivo de usar a autorização, nem atribui direito ao Poder Legislativo de cobrar tal uso.

A lei, portanto, deve conter comando impositivo àquele a quem se dirige, o que não ocorre nos projetos autorizativos, nos quais o eventual descumprimento da autorização concedida não acarretará qualquer sanção ao Poder Executivo, que é o destinatário final desse tipo de norma jurídica.

Assim, o art. 3º do Projeto de Lei nº 086/19 incorre em inconstitucionalidade por configurar antijurídica “lei autorizativa”, que é considerada um meio inválido e ilegítimo de legislar por não possuir aptidão para constituir, com força de lei, qualquer direito ou dever.

Para tornar viável o Projeto de Lei nº 086/19, que atende ao interesse local (art. 30 da CF), sugere-se a retirada do art. 3º, mediante emenda ou substitutivo.

Conclusão:

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 086/19, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa no art. 3º (art. 61, § 1º, da CF; arts. 60, II, “d”, e 82, VII, da CE/RS). Sugere-se, se for de interesse do proponente, que apresente substitutivo ou emenda retirando o art. 3º. Registra-se, novamente, que a legalidade da data comemorativa fica condicionada à ausência de subvenção de quaisquer atos pelo Poder Público ou mesmo ordem para que os eventos sejam realizados ou subsidiados pelo Município, considerando a vedação do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 11 de setembro de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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