PARECER JURÍDICO |
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"Altera o inciso I do art. 26 da Lei Municipal de nº 1.441, de 23 de dezembro de 1998 – Código Municipal de Saúde" 1. Relatório:A Vereadora Fernanda Garcia apresentou o Projeto de Lei nº 080/2019 à Câmara Municipal, alterando o inciso I do art. 26 do Código Municipal de Saúde – Lei Municipal nº 1.441, de 23 de dezembro de 1998. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. 2. Parecer:O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida de proteção às crianças que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 227 da CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22 da CF), o Projeto de Lei nº 080/2019 registra, na legislação municipal, mais especificamente no Código Municipal de Saúde (Lei Municipal nº 1.441/98), a necessidade de aplicação de testes de detecção precoce do autismo, o que se encontra alinhado aos deveres constitucionais de proteção da infância. Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 080/2019 é promover a proteção dos interesses das crianças, mormente do seu direito à saúde, por meio de medida de prevenção aplicável no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O artigo 227, caput, da Constituição Federal prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas destinadas à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratados como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º e 5º do referido Estatuto indicam, resumidamente, todos os direitos garantidos às crianças e adolescentes. Veja-se:
É perceptível, pois, que a medida pretendida no Projeto de Lei nº 080/19 é compatível com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90). Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste procurador sobre a matéria, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado. A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente. Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro. Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:
Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. Inclusive, o STF já decidiu não ser possível interpretação ampliativa quanto às regras de iniciativa parlamentar:
O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148). O artigo 61, § 1º, da CF não prevê, a princípio, restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo política pública. Deve-se, porém, verificar quais são os limites, mormente diante das alíneas “b” e “e”, que afetam ao Chefe do Executivo os projetos sobre organização administrativa, criação ou extinção de órgãos públicos. Da análise dos julgados do STF sobre políticas públicas, Cavalcante Filho (2013, p. 15) reconheceu a existência de fases da interpretação judicial sobre esse tema. A primeira, cujo paradigma é a ADI nº 2.417/SP, externa uma interpretação excessivamente ampliativa das restrições do artigo 61, § 1º, ao ponto de ter sido conferida a exclusividade ao Chefe do Executivo para dispor sobre quaisquer matérias pertinentes à Administração Pública. A segunda fase, cujo caso mais representativo é a ADI nº 2.808/RS, em que se analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Polo Estadual de Música Erudita na Região do Vale do Caí, trouxe interpretações menos ampliativas; a lei foi julgada inconstitucional, não por simplesmente dispor sobre matéria de administração pública, mas por ter criado um novo órgão público na estrutura administrativa. A terceira fase de interpretação do artigo 61, § 1º, ainda em implementação, é a menos restritiva, estando em consonância com a CF: “não mais se aceita uma interpretação ampliativa das hipóteses de iniciativa privativa; já começa a haver um debate sobre a possibilidade, ou não, de se relativizar a jurisprudência tradicional da Corte acerca do tema; e, principalmente, já se aventa a possibilidade de distinguir entre a criação de um órgão, a fixação de suas atribuições e a criação de política pública dentro das atribuições já fixadas para um órgão já existente.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 19). Na ADI nº 3.178/AP, paradigma para a fase mais moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou expressamente o seu posicionamento sobre a criação de políticas públicas pelo Legislativo:
O STF, abraçando a fase moderna de interpretação do artigo 61, § 1º, da CF, vem interpretando as restrições à iniciativa parlamentar com menor rigor, permitindo, sob certas balizas, a formulação de políticas públicas pelo Legislativo. Em dois casos emblemáticos, a Corte Suprema defendeu a iniciativa parlamentar para tratar desse tema: 1) AgR no RE nº 290.549/RJ: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa “Rua da Saúde”, a qual foi julgada constitucional, já que “a edição da referida lei, decorrente de iniciativa parlamentar, não representou invasão da esfera da competência privativa do Chefe do Poder Executivo local”, registrando-se, no voto do relator, a seguinte justificativa: “(...) a criação do programa instituído por meio dessa lei apenas tinha por objetivo fomentar a prática de esportes em vias e logradouros públicos, tendo ficado expressamente consignado nesse texto legal que ‘a implantação, coordenação e acompanhamento do programa ficará a cargo do órgão competente do Poder Executivo’, a quem incumbirá, também, aprovar as vias designadas pelos moradores para a execução do programa”; 2) ADI nº 3.394/AM: lei de iniciativa parlamentar que criou o programa de gratuidade de testes de maternidade e paternidade, a qual foi julgada constitucional por 8 votos a 2, “já que, ao contrário do afirmado pelo requerente, a lei atacada não cria ou estrutura qualquer órgão da Administração Pública local.” Vale lembrar que, na Constituição Federal, a restrição à iniciativa parlamentar prevista no artigo 61, § 1º, II, “e”, se limita aos projetos que criem ou extingam Ministérios ou órgãos da administração pública. Ocorre que a instituição de políticas públicas não se confunde com a criação de órgãos públicos. Como bem definiu Cavalcante Filho (2013, p. 22), “a formulação de uma política pública consiste mais em estabelecer uma conexão entre as atribuições de órgãos já existentes, de modo a efetivar um direito social.” Ou seja, a política pública, alicerçada nos direitos fundamentais (de aplicação imediata – artigo 5º, § 1º, CF), não envolve, por si só, a criação de um órgão público; ela se constitui em tarefas a serem implementadas por setores já existentes, sendo possível na medida em que não ocorra a transformação material do órgão, isto é, criação de novas atribuições. A política pública de criação permitida por atividade parlamentar, portanto, é a que estabelece uma conexão entre uma atribuição já existente no órgão público e a efetivação de um direito fundamental, sem criar novas funções ou atribuições. Nesse sentido, a iniciativa do Chefe do Executivo se restringe “à elaboração de normas que remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura da Administração Pública.”[2] Veja-se a esclarecedora lição de Cavalcante Filho (2013, p. 24):
O Projeto de Lei nº 080/2019 não pretende criar novo órgão público ou estabelecer uma nova atribuição; apenas explicita, na legislação local, a atividade que já é de incumbência do Poder Público (realização de triagem para o atendimento de saúde). O texto objetiva, especialmente, reproduzir no Código Municipal de Saúde (Lei Municipal nº 1.441/98) um dever já previsto na legislação federal (art. 14, § 5º, do ECA), medida que tem respaldo na aplicação imediata do direito fundamental à saúde. Isto é, a atribuição já existe; só está sendo regulamentada para garantir a sua efetividade. Assim, a medida pretendida com o Projeto de Lei nº 080/2019, além de não criar novas atribuições além das já existentes no Sistema Único de Saúde, visa especialmente a garantir, com efetividade, o direito à saúde das crianças, cuja obrigação, imposta ao Poder Público em todas as esferas da Federação, decorre de inúmeros dispositivos constitucionais (artigo 5º, caput e § 1º; artigo 6º; artigos 196 e 198). A própria Lei Federal nº 13.438/17, que introduziu o § 5º ao art. 14 do ECA, prevendo que “É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico”, é de autoria parlamentar. Quem a provocou foi a Senadora Ângela Portela (PT/RR), por meio do Projeto de Lei do Senado nº 451, de 2011. Tem-se, uma vez mais, hipótese de lei de iniciativa parlamentar criadora de política pública que não institui um novo órgão público, mas que apenas regulamenta, detalha e dá efetividade a atribuições e competências já constantes em lei. Ainda assim, embora se possa defender que, de fato, o Projeto de Lei nº 080/19 não tenha vício de iniciativa, sendo uma entre as teses possíveis, a realidade é que o Prefeito tem o poder de vetar as proposições legislativas aprovadas na Câmara Municipal, fundamentando política ou juridicamente as razões, tendo também legitimidade para ingressar com eventual ação direta de inconstitucionalidade caso o veto seja derrubado pelos membros do Poder Legislativo. Inerente ao caso, portanto, um risco de ser ajuizada a ação direta pelo Prefeito no âmbito do Tribunal de Justiça. [1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>. [2] VIEIRA JUNIOR, Ronaldo Jorge Araujo. O Supremo Tribunal Federal e o Controle Jurisdicional da Atuação do Poder Legislativo: visão panorâmica e comentada da jurisprudência constitucional. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 260. Conclusão:Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria opina pela ausência de inconstitucionalidade manifesta do Projeto de Lei nº 080/2019, por apenas dar efetividade, na legislação local, ao dever já previsto no art. 14, § 5º, do Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, alerta-se para a possibilidade de que, em eventual ação direta de inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça venha a reconhecer inconformidade com a Constituição Estadual, por adoção de entendimento diverso. Salienta-se, por fim, que deverá ser respeitado o disposto no art. 46, § 1º, da Lei Orgânica Municipal, no sentido de que sejam garantidas a ampla divulgação e a realização de consulta pública para o recebimento de sugestões, tratando-se, evidentemente, de etapa necessária à validade jurídica do processo legislativo. É o parecer, salvo melhor juízo. Guaíba, 21 de agosto de 2019. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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