Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 073/2019
PROPONENTE : Ver. Alex Medeiros
     
PARECER : Nº 200/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o programa merenda nas férias e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Alex Medeiros apresentou o Projeto de Lei nº 073/19 à Câmara Municipal, objetivando instituir o programa “Merenda nas Férias” para alunos das escolas municipais de Guaíba. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o controle quanto à constitucionalidade, à competência da Câmara e ao caráter pessoal das proposições. 

2. Parecer:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende criar deveres ao Executivo Municipal, no sentido de oferecer refeições aos alunos da rede pública durante as férias escolares, em horário de almoço e da tarde. Estabelece que a Secretaria Municipal de Educação realizará consulta em cada escola para verificar se os alunos possuem interesse na alimentação durante as férias, sendo que, havendo um mínimo de 10% de interessados, a escola será incluída no programa instituído pela lei. O projeto consiste em manter as escolas abertas nos meses de dezembro, janeiro e julho para receberem alunos que queiram obter a alimentação gratuita, podendo a Secretaria Municipal de Educação conciliar o projeto com atividades extracurriculares nas escolas.

Tais medidas, embora de notável respeitabilidade, caracterizam inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa e inconstitucionalidade material por afronta ao princípio constitucional da separação entre os poderes. A matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição Federal de 1988, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de programa que deve ser implementado pelo Poder Executivo, através da Secretaria Municipal de Educação, para o fornecimento de merenda nas férias escolares aos alunos da rede de ensino municipal, o que cabe exclusivamente ao Prefeito definir, seja por meio de projeto de lei da sua iniciativa privativa, seja diretamente por atos administrativos.

O Projeto de Lei nº 073/2019, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 – São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 – Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e art. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental.” (em "Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade material e formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer os programas que devem ser realizados em âmbito educacional, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade. Aliás, vejam-se alguns precedentes da jurisprudência em que já se declarou a inconstitucionalidade de leis municipais que instituem programas de alimentação escolar por iniciativa parlamentar:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO QUE CRIA A OBRIGAÇÃO AO EXECUTIVO E A DESLOCAR PESSOAL PARA TANTO. INCONSTITUCIONALIDADE. Evidencia-se inconstitucionalidade, por vício formal de iniciativa, na Lei Municipal nº 10.729/2009, que criou o Programa de Alimentação Diferenciada para crianças diabéticas na rede municipal de ensino, inclusive em creches, com acompanhamento contínuo durante a vida escolar e, em casos excepcionais, fora da escola, através de um programa a ser elaborado e desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação em parceria com equipe técnica composta por nutricionistas, pediatras, pedagogos e professores de educação física. A hipótese, configura indevida ingerência do Legislativo na competência exclusiva do Executivo Municipal com evidente impacto financeiro e na estrutura administrativa de pessoal do Poder Executivo, pelo que não há como mantê-la no mundo jurídico. (TJMG – ADI nº 1.0000.10.002812-5/000, Relator: Des. Geraldo Augusto , Corte Superior, julgamento em 27/04/11, publicação da súmula em 10/06/11)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL 4.061, de 19 DE MAIO DE 2017, DO MUNICÍPIO DE SOCORRO, QUE "DISPÕE SOBRE O FORNECIMENTO DE ALIMENTAÇÃO DIFERENCIADA EM ESCOLAS MUNICIPAIS E DEMAIS ÓRGÃOS PÚBLICOS DO MUNICÍPIO DE SOCORRO/SP PARA PORTADORES DE DIABETES, HIPERTENSÃO, ANEMIAS OU ALERGIAS E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS"INICIATIVA PARLAMENTAR – IMPOSSIBILIDADE - MATÉRIA DE NATUREZA EMINENTEMENTE ADMINISTRATIVA, PERTINENTE AO PODER EXECUTIVO – OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – INOCORRÊNCIA, ENTRETANTO, DE AFRONTA, AO ART. 25 DA CARTA BANDEIRANTE - AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE, PARA DECLARAR INCONSTITUCIONAL A LEI EM QUESTÃO. (TJSP; Direta de Inconstitucionalidade 2201269-66.2017.8.26.0000; Relator (a): João Negrini Filho; Órgão Julgador: Órgão Especial; Tribunal de Justiça de São Paulo - N/A; Data do Julgamento: 06/06/18; Data de Registro: 12/06/18)

O Projeto de Lei nº 073/2019 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada.

Conclusão:

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 073/19, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, CF/88; art. 60, II, “d”; e art. 82, VII, da CE/RS) e de inconstitucionalidade material por afronta ao princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF/88; art. 5º, CE/RS), bem como afronta ao art. 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se a remessa de indicação ao Prefeito para que, pela via política, implemente a medida.

Guaíba, 19 de julho de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS n.º 110.114B



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