Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 072/2019
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 197/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o programa “Adote um Bem Público” no Município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 072/2019 à Câmara Municipal, objetivando instituir o programa “Adote um Bem Público” no Município de Guaíba. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o controle preventivo quanto à constitucionalidade.

2. Parecer:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende estabelecer programa sob a responsabilidade do Poder Público Municipal, no sentido de promover parcerias com a iniciativa privada para a manutenção e preservação dos bens públicos municipais de uso comum do povo. A matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição Federal, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de programa que deve ser implementado pelo Executivo com a iniciativa privada para a delegação de atividades de manutenção de bens públicos, o que cabe exclusivamente ao Prefeito definir.

O Projeto de Lei nº 072/2019, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 - São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 - Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e arts. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental.” (em "Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer os programas que devem ser realizados pelo Município para a manutenção dos bens públicos municipais, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade. Vejam-se os precedentes a seguir, ambos do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 4.273/2015, DO MUNICÍPIO DE CANGUÇU, QUE INSTITUI O BANCO DE REGISTRO DE DOADORES DE SANGUE. CRIAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. MATÉRIA SOBRE A QUAL COMPETE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LEGISLAR PRIVATIVAMENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE PROCLAMADA. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, lei municipal proposta pelo Poder Legislativo que, ao instituir banco de registro de doadores de sangue, cria atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, porquanto são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 60, inc. II, alínea "d", da Constituição Estadual). Por conseguinte, também resta caracterizada ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes no âmbito municipal, consagrado nos arts. 8º, caput, e 10 da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068415397, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 17/10/2016)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL DE Nº 1.167/2004, DE ORIGEM DA CÂMARA DE VEREADORES, QUE "AUTORIZA AO PODER EXECUTIVO, EM PARCERIA COM A COMUSA, DISPONIBILIZAR FOTOS DE PESSOAS DESAPARECIDAS NAS CONTAS DE ÁGUA, NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO". A CIRCUNSTÂNCIA DE SE TRATAR DE [PRETENSA] "AUTORIZAÇÃO" NÃO FAZ DESAPARECER A CARACTERÍSTICA DE INCONSTITUCIONALIDADE, MORMENTE EM SE TRATANDO DE MEDIDA TIPICAMENTE ADMINISTRATIVA, SENDO, POIS, DE INICIATIVA LEGIFERANTE DO PODER EXECUTIVO. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70010716025, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alfredo Guilherme Englert, Julgado em 02/05/2005)

O Projeto de Lei nº 072/2019 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada.

Por fim, cabe lembrar que não há qualquer irregularidade na rejeição do presente projeto e na tramitação do Projeto de Lei nº 064/19 – “União Faz a Educação – Adote uma Escola”, de autoria da Vereadora Claudinha Jardim, tendo em vista que, em relação à proposição admitida, há jurisprudência pontualmente específica sobre o caso, oriunda do TJRS, permitindo a emissão de parecer jurídico favorável com a devida segurança. Veja-se a ementa da referida ação direta já julgada:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 3.080/2017. MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO. “INSTITUI O PROGRAMA DE PARCERIA A UNIÃO FAZ A EDUCAÇÃO - ADOTE UMA ESCOLA”. LEI DE INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO. VÍCIO DE INICIATIVA NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE ALTERAÇÃO NA ESTRUTURAÇÃO DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS E ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES NÃO CONFIGURADA. Não padece de inconstitucionalidade formal lei municipal de iniciativa do Poder Legislativo que institui o programa denominado “A União faz a Educação - Adote uma Escola”, possibilitando que as empresas privadas contribuam para a melhoria da qualidade do ensino na rede pública municipal, por meio de doações de materiais escolares, livros, uniformes, promoção de palestras, e patrocínio de obras de manutenção, reforma e ampliação de prédios escolares, com direito à publicidade. A lei impugnada não altera a estruturação dos órgãos públicos, nem as atividades administrativas, tampouco cria atribuições aos órgãos da Administração, matérias de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, previstas no art. 60, II, da Constituição Estadual. JULGARAM IMPROCEDENTE, POR MAIORIA.(Ação Direta de Inconstitucionalidade, Nº 70076374750, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em: 21-05-2018)

Trata-se de um entre determinados casos pontuais em que, excepcionalmente, a jurisprudência do TJRS considerou não haver vício de iniciativa, embora, à primeira vista, o projeto tenha tratado sobre questões de natureza administrativa. Isso se deve ao fato de que as hipóteses de reserva de iniciativa previstas na Constituição Federal (art. 61, § 1º) e na Constituição Estadual (art. 60) vêm, progressivamente, recebendo interpretação mais restrita, permitindo uma atividade mais criativa e inovadora por parte do Poder Legislativo. Todavia, tal fenômeno tem avanço lento e progressivo, sendo o precedente do “Adote uma Escola” um dos mais significativos e excepcionais, de modo que, na situação do projeto de autoria da Vereadora Claudinha Jardim, havia segurança para a opinião favorável por ser a proposição em termos muito similares. No caso do projeto em análise, por outro lado, não há segurança para o parecer juridicamente viável porque o conteúdo amplia por demais a relação dos bens sujeitos à “adoção” e se percebe a criação de inúmeras obrigações e responsabilidades aos órgãos públicos do Poder Executivo.

Conclusão:

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe – PL nº 072/19, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, CF/88; art. 60, II, “d”, e art. 82, VII, da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, inciso II, da Lei Orgânica Municipal.

Guaíba, 16 de julho de 2019

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS 110.114B



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