Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 070/2019
PROPONENTE : Ver. Juliano Ferreira
     
PARECER : Nº 178/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a obrigatoriedade de orientações para primeiros socorros em caso de engasgamento, aspiração de corpo estranho, asfixia e prevenção de morte súbita de recém-nascidos, a serem ministradas por profissionais especializados durante o pré-natal nas UBS’s (Unidades Básicas de Saúde) neste município e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Juliano Ferreira apresentou o Projeto de Lei nº 070/2019 à Câmara Municipal, objetivando dispor acerca da obrigatoriedade de prestação de orientações sobre primeiros socorros pelos profissionais das unidades básicas de saúde em benefício dos pais, mães ou responsáveis legais de recém-nascidos no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara.

2. Parecer:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

A política de orientação dos pais e responsáveis por recém-nascidos que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 070/2019 objetiva garantir o direito à saúde de crianças, notadamente no aspecto preventivo, o que encontra amparo no art. 23, inciso II, da CF/88, que atribui tal responsabilidade a todos os entes federados indistintamente.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. A CF/88, no art. 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O art. 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Percebe-se, assim, que o PL nº 070/2019 está em consonância com o regramento constitucional do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do art. 5º da CF/88.

O projeto também é materialmente compatível com as normas constitucionais e legais de proteção da infância e juventude. O art. 227, caput, da CF/88 prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas de garantia à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratadas como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º e 5º do referido Estatuto indicam, resumidamente, todos os direitos garantidos às crianças e adolescentes. Veja-se:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

É perceptível, portanto, que a medida pretendida no Projeto de Lei nº 070/2019 é compatível com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

Ocorre, no entanto, que o Projeto de Lei nº 070/2019, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60. São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Muito embora o Projeto de Lei nº 070/2019 não tenha, à primeira vista, o condão de gerar novas despesas, por referir-se a uma espécie de treinamento que já abrange os conhecimentos técnicos dos profissionais da saúde municipal, a proposição institui um programa de orientação para pais e responsáveis legais, a ser promovido pelas unidades básicas de saúde por profissionais capacitados, o que envolve, portanto, a prática de atos de exclusiva alçada do Poder Executivo, enquanto titular dos serviços públicos municipais e responsável único pela organização do seu funcionamento. Lembre-se que unidades básicas de saúde têm a natureza jurídica de órgãos públicos do Executivo, de modo que as determinações de realização de cursos de treinamento aos pais devem partir unicamente do titular desse Poder, por se tratar de atos relacionados à gestão do serviço público.

Desse modo, apesar de honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos com tais obrigações compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa e pelos serviços públicos municipais.

A propósito, destaca-se a jurisprudência do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO MUNICÍPIO DE VIAMÃO. INSTITUIÇÃO DE PROGRAMA DE HIGIENE BUCAL NA REDE DE ENSINO MUNICIPAL. INICIATIVA DA CÂMARA DE VEREADORES. VÍCIO FORMAL. MATÉRIA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA SIMETRIA E DA HARMONIA E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. Deve ser declarada inconstitucional a Lei Municipal n.° 3.893, de 16 de agosto de 2011, de iniciativa da Câmara de Vereadores, a instituir programa de higiene bucal na rede de ensino, pois impõe atribuições à Secretaria Municipal da Educação e interfere na organização e funcionamento da Administração, matéria de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. A inobservância das normas constitucionais de processo legislativo tem como consequência a inconstitucionalidade formal da lei impugnada, pois violados os princípios da simetria, da harmonia e independência entre os Poderes. Ofensa aos arts. 8º, 10, 60, 82 da Constituição Estadual e 61 da Constituição Federal. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70044693992, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 19/12/2011).

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 070/2019 contém vício de iniciativa, por dispor sobre um programa que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, do artigo 60, II, “d”, da CE/RS e dos artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica.

Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais, para a implementação da política prevista no PL nº 070/2019, independente de projeto de lei, diante do seu inquestionável mérito.

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria Jurídica orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, no artigo 60, II, “d”, da CE/RS e nos artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica.

Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais, para a implementação da política prevista no PL nº 070/2019, independentemente de lei, diante do seu inquestionável mérito.

Guaíba, 26 de junho de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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