Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Executivo n.º 020/2019
PROPONENTE : Executivo Municipal
     
PARECER : Nº 144/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Autoriza o Município de Guaíba a doar dois lotes situados na Zona Urbana de Guaíba, à empresa Ferragens Negrão Comercial Ltda"

1. Relatório:

O Executivo Municipal apresentou o Projeto de Lei nº 020/2019 à Câmara Municipal, que autoriza o Município de Guaíba a doar dois lotes situados na Zona Urbana de Guaíba à empresa Ferragens Negrão Comercial LTDA. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do art. 105 do Regimento Interno.

2. FUNÇÕES DA PROCURADORIA JURÍDICA

A Procuradoria Jurídica da Câmara de Guaíba, órgão consultivo com previsão no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18, exerce as funções de assessoramento jurídico e de orientação da Mesa Diretora, da Presidência da Casa e dos setores legislativos, através da emissão de pareceres escritos e verbais, bem como de opiniões fundamentadas objetivando a tomada de decisões, por meio de reuniões, de manifestações escritas e de aconselhamentos. Trata-se de órgão público que, embora não detenha competência decisória, orienta juridicamente o gestor público e os setores legislativos, sem caráter vinculante.

Os pareceres jurídicos são atos resultantes do exercício da função consultiva desta Procuradoria Jurídica, no sentido de alertar para eventuais inconformidades que possam estar presentes. Conforme leciona Hely Lopes Meirelles na obra Direito Administrativo Brasileiro, 41ª ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2015, p. 204, “O parecer tem caráter meramente opinativo, não vinculando a Administração ou os particulares à sua motivação ou conclusões, salvo se aprovado por ato subsequente. Já, então, o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva.”

Desse modo, a função consultiva desempenhada por esta Procuradoria com base no art. 3º da Lei Municipal nº 3.687/18 – que dispõe sobre a organização administrativa da Câmara Municipal de Guaíba – não é vinculante, motivo pelo qual é possível, se for o caso, que os agentes políticos formem suas próprias convicções em discordância com as opiniões manifestadas por meio do parecer jurídico.

3. Parecer:

A norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto à competência, não há qualquer óbice à proposta. Conforme dispõe o artigo 30, I, da Constituição Federal de 1988, “Compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local.” No mesmo sentido, o artigo 6º, I, da Lei Orgânica do Município de Guaíba refere que “Ao Município compete prover a tudo quanto diga respeito ao seu peculiar interesse e ao bem estar de sua população, cabendo-lhe privativamente, dentre outras, as seguintes atribuições: legislar sobre assunto de interesse local.”

Verifica-se, também, estar adequada a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, uma vez que o projeto de lei apresentado trata da transferência de bens municipais e, sobre este tema, dispõe a Lei Orgânica do Município de Guaíba:

Art. 52 Compete privativamente ao Prefeito:

[...]

XXII - administrar os bens e as rendas municipais, promover o lançamento, a fiscalização e a arrecadação de tributos;

Art. 92 Cabe ao Prefeito a administração dos bens municipais, respeitada a competência da Câmara quanto àqueles utilizados em seus serviços.

Como justificativa para a doação, o Poder Executivo alega, na exposição de motivos, que o ato tem por objetivo incentivar a ampliação e o desenvolvimento da empresa Ferragens Negrão Comercial LTDA, oportunizando o avanço de suas atividades no âmbito estadual e, consequentemente, trazendo benefícios ao Município de Guaíba. A instalação do empreendimento nas áreas doadas proporcionará, segundo o Prefeito, a criação de empregos diretos e indiretos, bem como a incorporação de modernas tecnologias de armazenamento e distribuição de produtos para a construção civil. Além disso, projeta-se a duplicação do faturamento da empresa e do número de postos de emprego, com atração de novos empreendimentos que venham a atender à sua expansão. Isso tudo gerará ao Município de Guaíba um incremento da receita pública, pela maior arrecadação de tributos.

Inicialmente, a Constituição Federal de 1988, ao tratar da matéria de licitações, estabelece, no seu art. 37, inciso XXI, que “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. A Lei Geral de Licitações (Lei Federal nº 8.666/93), por sua vez, dispõe:

Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (Redação dada pela Lei nº 12.349, de 2010)

Como se vê da leitura do dispositivo legal, um dos principais motivos da existência da licitação, na Administração Pública, é a possibilidade concreta da obtenção de propostas vantajosas e econômicas, de modo a atender ao interesse público e a efetivar, na prática, os princípios constitucionais administrativos. Hely Lopes Meirelles, em sua obra “Direito Administrativo Brasileiro”, 39ª edição, 2013, p. 290-291, assim leciona:

Licitação é o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse, inclusive o da promoção do desenvolvimento econômico sustentável e fortalecimento de cadeias produtivas de bens e serviços domésticos.

[...] Com poucas divergências, a doutrina é acorde na acentuação desses traços essenciais e de duas tradicionais finalidades da licitação – obtenção do contrato mais vantajoso e resguardo dos direitos de possíveis contratados. É preocupação que vem desde a Idade Média, e leva os Estados Modernos a aprimorarem cada vez mais o procedimento licitatório, hoje sujeito a determinados princípios, cujo descumprimento descaracteriza o instituto e invalida seu resultado seletivo.

Ricardo Alexandre e João de Deus, na obra “Direito Administrativo”, 3ª edição, 2017, p. 482, por sua vez, discorrem da seguinte maneira:

Com efeito, a realização de licitação possibilita que a Administração escolha a proposta que lhe seja mais vantajosa (não necessariamente a mais econômica), evitando, em homenagem ao princípio da impessoalidade, que os gestores públicos adotem critérios pessoais ou políticos na escolha dos contratados. Além do mais, proporciona igualdade de oportunidades a todos aqueles que têm interesse em contratar com a Administração, respeitando-se o princípio da isonomia.

Assim, tem-se que a licitação, enquanto regra constitucional, garante que a Administração Pública obtenha a proposta mais vantajosa e, simultaneamente, concretize os princípios constitucionais explícitos e implícitos aplicáveis, mormente o da impessoalidade.

Há, contudo, hipóteses em que a Lei de Licitações estabelece a dispensa da licitação, que tanto podem refletir casos de licitação dispensável (art. 24) como de licitação dispensada (art. 17). Quanto a esta última, o art. 17 prevê que bens da Administração Pública podem ser alienados, cumpridos alguns requisitos para tanto: 1) existência de interesse público devidamente justificado; 2) avaliação; 3) quando imóveis, a prévia autorização legislativa; 4) em regra, licitação na modalidade concorrência. A licitação poderá ser dispensada, entre outras causas, na doação (art. 17, I, “b”, da Lei nº 8.666/93).

A redação prevista na alínea “b” do inciso I do art. 17 da Lei de Licitações prevê que a doação com licitação dispensada só é viável quando feita para outro órgão ou entidade da administração pública, de qualquer esfera de governo. Ocorre, entretanto, que a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 927-3, processada no STF, recebeu medida cautelar para suspender, em relação aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, os efeitos do art. 17, I, “b”, porque a competência legislativa da União, em matéria de licitações e contratos administrativos, se limita a estabelecer normas gerais, razão pela qual a restrição “permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da administração pública teria extrapolado os limites de competência legislativa federal. Assim, segundo a interpretação do STF na medida cautelar, ficaria suspenso o trecho que restringe doações apenas a órgãos e a entes públicos, tornando-se possível, como regra, quaisquer doações com licitação dispensada, desde que atendidos os demais requisitos do art. 17 da Lei nº 8.666/93.

Para tornar mais clara e fundamentada a argumentação, veja-se a lição doutrinária de Marçal Justen Filho, na obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 16. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 330:

O STF, em decisão cautelar na ADI 927/RS, apreciou questionamento sobre a validade e extensão de inúmeros dispositivos da Lei 8.666/1993. De modo geral, todas as impugnações foram rejeitadas, com ressalva de algumas atinentes a dispositivos do art. 17. A questão acabou despertando inúmeras dúvidas, inclusive derivadas de alguma complexidade na redação do acórdão e dos diversos votos emitidos. [...]

É bem verdade que a leitura dos votos produz algumas dúvidas, tal como adiante referido. Conforme exposto no relatório do ilustre Ministro Carlos Velloso, a inicial pleiteava o reconhecimento da inconstitucionalidade da interpretação que “dá por extensivas aos Estados e Municípios as regras do art. 17, I, b e c, II, a, b e § 1º, da mesma Lei 8.666/1993.” Quanto a isso, pleiteou-se na inicial a adoção de interpretação conforme a Constituição. Portanto, em momento algum se deduziu pleito de declaração de inconstitucionalidade dos referidos dispositivos. Dito de outro modo, não se controvertia sobre sua validade em face da própria União. Essa ressalva é de grande relevância porque a redação do acórdão, ao sumariar o resultado, pode induzir à conclusão de que alguns dos dispositivos teriam tido sua aplicação suspensa de modo absoluto. Resultado dessa ordem não pode ser admitido, eis que configuraria julgamento extra petita. Mais ainda, o teor dos diversos votos induz claramente a conclusão diversa. [...]

No tocante ao inc. I, alínea b, foi deferida a liminar para suspender a vigência, até o julgamento final, quanto a Estados, Distrito Federal e Municípios e respectivas administrações indiretas, da expressão “permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo”, contida no inc. I, alínea b, do art. 17. Não houve maiores divergências quanto  a esse ponto, ficando vencido apenas o Ministro Paulo Brossard.

Suspensa, então, a aplicabilidade da restrição prevista na alínea “b” do inciso I do art. 17 da Lei Federal nº 8.666/93 quanto aos Estados, Distrito Federal e Municípios, os requisitos básicos para as doações de imóveis da Administração Pública com licitação dispensada são: (i) interesse público devidamente justificado; (ii) autorização legislativa prévia; (iii) avaliação dos bens a serem doados. Soma-se a esses requisitos o que consta no art. 101 do Código Civil: “Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.” Só estão sujeitos à alienação, portanto, os bens de natureza dominical, isto é, aqueles bens que apenas compõem o patrimônio da Administração Pública, mas que não estão destinados a uma finalidade pública específica.

Nesse sentido, estão ausentes no Projeto de Lei nº 020/2019 os laudos de avaliação dos bens a serem doados, que não podem ser dispensados sob hipótese alguma, já que toda e qualquer alienação de bens públicos pressupõe a apuração do seu adequado valor de mercado. Quanto ao interesse público devidamente justificado, trata-se de matéria de mérito a ser verificada pelos vereadores, que deverão ponderar, através de seu voto, sobre a existência de justificativa plausível para a doação dos bens públicos. Todavia, um fator importante sobre a justificativa de interesse público que não foi enfrentado pelo Poder Executivo consta no art. 96 da Lei Orgânica Municipal: “O Município, preferentemente a venda ou doação de seus bens imóveis, outorgará concessão de direito real de uso, mediante prévia autorização legislativa e concorrência pública”. Nesses termos, não houve qualquer justificativa sobre a maior vantagem à Administração Pública na doação dos dois imóveis em comparação a outros institutos que não provoquem a transferência da propriedade.

Para justificar o interesse público na doação das áreas, o Poder Executivo refere, no § 2º do art. 2º, que a doação está amparada pela Lei Municipal nº 2.664/10, que dispõe sobre a política de incentivo ao desenvolvimento econômico e social do Município de Guaíba. A referida lei, no art. 3º, inciso I, permite o deferimento de incentivo consistente em doação ou concessão de uso de área destinada à construção ou instalação do empreendimento. Para tanto, porém, exigem os arts. 8º e 9º que haja requerimento do interessado, acompanhado de projeto circunstanciado com diversas informações sobre a regularidade da empresa e sobre as características do investimento pretendido.

O processo administrativo relativo à concessão do incentivo econômico, entretanto, não foi encaminhado em anexo ao Projeto de Lei nº 020/19 para a análise de sua regularidade pelas comissões temáticas e pelos vereadores. Aliás, não há qualquer documento acompanhando a proposição. Essa ausência torna inviável a análise do cumprimento da legislação local sobre a concessão de incentivos econômicos, uma condicionante à legalidade e ao interesse público na doação.

A doação contém a previsão de alguns encargos a serem cumpridos pelo donatário. Encargos são cláusulas acessórias do negócio jurídico que atribuem uma finalidade ou destinação específica do seu objeto, não suspendendo a aquisição nem o exercício do direito (art. 136 do Código Civil). De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, na obra “Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações, 15. ed., São Paulo: Saraiva, 2018”,

Obrigação modal (com encargo ou onerosa) é a que se encontra onerada por cláusula acessória, que impõe um ônus ao beneficiário de determinada relação jurídica. Trata-se de pacto acessório às liberalidades (doações, testamentos), pelo qual se impõe um ônus ou obrigação ao beneficiário. É admissível, também, em declarações unilaterais da vontade, como na promessa de recompensa, e raramente nos contratos onerosos (pode ocorrer na compra e venda de um imóvel, com o ônus de franquear a passagem ou a utilização por terceiros, p. ex.). É comum nas doações feitas ao município, em geral com a obrigação de construir um hospital, escola, creche ou algum outro melhoramento público; e nos testamentos, em que se deixa a herança a alguém, com a obrigação de cuidar de determinada pessoa ou de animais de estimação. Em regra, é identificada pelas expressões “para que”, “a fim de que”, “com a obrigação de”.

Da leitura do Projeto de Lei nº 020/2019, constatam-se os seguintes encargos: a) art. 2º, caput: os imóveis doados deverão ser utilizados para expansão do Centro de Distribuição em Guaíba/RS, bem como para proceder a melhorias nas instalações e áreas de estacionamento, pátio de manobras, circulação, acesso a docas e depósito; b) art. 3º, inciso II: regularização para titulação de atuais ocupantes da Área 03 (um dos imóveis a serem doados) como proprietários das ocupações consolidadas, bem como destaque de via pública para registro em nome do Município; c) art. 3º, inciso III: instalação de cercas ou muros nos imóveis doados; d) art. 3º, inciso IV: limpeza e recuperação da faixa de área degradada nos imóveis, bem como plantio de mudas nativas e conservação de plantas e jardins.

Ocorre que doações com encargos, como regra geral, devem ser licitadas, mormente quando esses ônus possam ser cumpridos em condições de competitividade, com escolha da proposta de execução mais vantajosa à Administração Pública. Leia-se o art. 17, § 4º, da Lei de Licitações: “A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, sendo dispensada a licitação no caso de interesse público devidamente justificado.”

A respeito desse ponto, veja-se novamente a doutrina de Marçal Justen Filho, na obra “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, 16. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 326-327:

Uma hipótese peculiar, objeto de tratamento específico no § 4º, é a doação com encargo. A opção por essa alternativa dependerá da relevância do encargo para consecução dos interesses coletivos e supraindividuais. Em determinadas hipóteses, a doação com encargo apresentará regime jurídico próprio, inclusive com a obrigatoriedade da licitação.

Assim, por exemplo, poderá ser do interesse estatal a construção de um certo edifício em determinada área. Poderá surgir como solução a doação de imóvel com encargo para o donatário promover a edificação. Essa é uma hipótese em que a doação deverá ser antecedida de licitação, sob pena de infringência do princípio da isonomia. Em outras hipóteses, porém, o encargo assumirá relevância de outra natureza. A doação poderá ter em vista a situação do donatário ou sua atividade de interesse social. Nesse caso, não caberá a licitação. Assim, por exemplo, uma entidade assistencial poderá receber doação de bens gravados com determinados encargos. A situação se subsumiria à alínea a do inc. II, mesmo existindo o encargo.

Assim, seguindo a regra legal do art. 17, § 4º, da Lei nº 8.666/93 e a lição doutrinária acima transcrita, os encargos que possam ser cumpridos por mais de um interessado e que não levem em conta, especificamente, a situação do donatário ou sua atividade de interesse social devem ser objeto de licitação, o que deve ser avaliado na situação em análise, com vistas a não se dispensar irregularmente a realização do devido processo licitatório.

Além disso, percebe-se certa contrariedade do encargo do art. 3º, inciso II, com o art. 2º, § 1º, uma vez que, se a “Área 03” deverá ser regularizada com a titulação dos atuais ocupantes como proprietários das posses então consolidadas, haveria transferência da propriedade, o que em tese é vedado pela cláusula de intransferibilidade instituída no projeto.

Por fim, o art. 3º, inciso I, do Projeto de Lei nº 020/19 aparenta não possuir natureza de encargo, mas de contraprestação, institutos que não se confundem. Novamente, é importante atentar para a lição da doutrina:

É preciso salientar, sempre, que o encargo não é uma contraprestação sendo proporcionalmente muito menos extenso do que o beneficio recebido. Isso porque, se o encargo for muito pesado, pode descaracterizar a doação, transformando-a, por exemplo, em uma compra e venda disfarçada. Descumprindo o encargo, o seu beneficiário poderá exigir a sua execução judicial, sendo que se o beneficiário for a coletividade, está o Ministério Publico legitimado a exigir tal execução. Ressalte-se que, como veremos, além dessa conseqüência (execução coercitiva), se houver descumprimento do encargo, poderá o doador até mesmo revogar a doação. (Pablo Stolze Gagliano, Novo Curso de Direito Civil, v. 4, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 152)

Destarte, o encargo apresenta-se como restrição à liberdade, quer estabelecendo uma finalidade ao objeto do negócio, quer impondo uma obrigação ao favorecido, em benefício do instituidor ou de terceiro, ou mesmo da coletividade. Não deve, porém, o encargo se configurar em contraprestação; não pode ser visto como contrapartida ao benefício concedido. Se houver contraprestação típica, a avença deixa de ser liberal para ser onerosa, não se configurando o encargo (Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil..., 2012)

O “encargo” do inciso I do art. 3º revela-se, na verdade, como contraprestação, visto que consiste na construção e/ou edificação de um prédio comercial térreo, com área de até 500m², destinado a substituir o antigo abrigo de tratamento de cães com instalação de um centro de zoonoses, em terreno de propriedade do Município de Guaíba, descrito na proposição, cujo projeto deverá ser desenvolvido pelo Município. Trata-se, notoriamente, de uma contraprestação e não de um encargo, já que é proporcionalmente muito menos extenso do que o benefício recebido. Embora não se conheçam valores, pois não apresentados os laudos de avaliação ou mesmo algum projeto do centro de zoonoses, pode-se inferir que a edificação de um prédio comercial com até 500m² demandará grande investimento financeiro e de mão de obra, a cargo do donatário.

A contraprestação assim admitida desnatura a doação, transformando-a em outro negócio jurídico, podendo tratar-se de permuta entre dois imóveis por natureza e um imóvel por acessão física artificial (centro de zoonoses), se os valores forem equivalentes. Conforme Maria Helena Diniz (Curso Geral de Direito Civil, volume 1: teoria geral do direito civil. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 344), o imóvel por acessão física artificial “Inclui tudo aquilo que o homem incorporar artificial e permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções (pontes, viadutos, etc.), de modo que se não possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano.” Tem previsão legal no art. 79 do CC: “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.”

Portanto, obras em imóveis têm natureza jurídica de bens imóveis por acessão física artificial e se caracterizam como contraprestação, e não encargo, gerando, por efeito, a desnaturação do contrato unilateral de doação e a formação de possível permuta, se os valores forem equivalentes. A propósito, no âmbito da União, a Lei Federal nº 9.636/98, no art. 30, caput, prevê expressamente a possibilidade de permuta por edificações a construir: “Poderá ser autorizada, na forma do art. 23, a permuta de imóveis de qualquer natureza, de propriedade da União, por imóveis edificados ou não, ou por edificações a construir.”

No caso específico de permuta de imóveis por edificações a construir, faz-se necessária a realização de procedimento licitatório. Isso porque não é o caso de permuta entre imóveis certos e determinados que sejam indispensáveis ao atendimento do interesse público; são edificações a construir por parte de particular, cuja contrapartida se faz com bens imóveis que compõem o patrimônio disponível da Administração (bens de natureza dominical). E, sendo edificações a construir, não há motivo para que certa e determinada pessoa seja selecionada diretamente para cumprir tal obrigação. Deve, então, ser observado o § 2º do art. 30 da Lei Federal nº 9.636/98: “Na permuta, sempre que houver condições de competitividade, deverão ser observados os procedimentos licitatórios previstos em lei.”

4. Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria Jurídica, em conclusão, tece as seguintes considerações sobre o Projeto de Lei nº 020/2019:

a) a competência legislativa e a iniciativa foram adequadamente atendidas, visto que o assunto é de interesse local (art. 30, inciso I, da CF/88), não extrapolando competências de outros entes, e a proposição foi apresentada pelo Chefe do Executivo, autoridade competente para administrar os bens municipais (art. 52, inciso XXII, e art. 92 da LOM);

b) a regra de toda e qualquer obra, serviço, compra e alienação de bens é a realização de licitação, na modalidade adequada, conforme art. 37, inciso XXI, da CF/88 e art. 2º da Lei nº 8.666/93, sendo que, no caso de doação de imóveis pela Administração Pública, é cabível, como regra, a licitação dispensada, desde que atendidos os requisitos (i) interesse público devidamente justificado, (ii) autorização legislativa e (iii) avaliação dos bens a serem doados (art. 17 da Lei nº 8.666/93);

c) na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 927-3, processada no STF, houve deferimento de medida cautelar para suspender, em relação aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, os efeitos do art. 17, inciso I, “b”, que restringia as doações com licitação dispensada tão somente para beneficiários “órgãos ou entidades da administração pública de qualquer esfera de governo”, porque a competência legislativa da União, em matéria de licitações e contratos administrativos, se limita a estabelecer normas gerais, tendo a restrição extrapolado os limites de competência legislativa federal;

d) estão ausentes no Projeto de Lei nº 020/2019 os laudos de avaliação dos bens a serem doados, que não podem ser dispensados sob hipótese alguma, já que toda e qualquer alienação de bens públicos pressupõe a apuração do seu adequado valor de mercado, além do que ficou prejudicada a análise da existência de interesse público porque a proposição não veio acompanhada de cópia do procedimento previsto nos arts. 8º e 9º da Lei Municipal nº 2.664/10, que dispõe sobre a política de incentivo ao desenvolvimento econômico e social do Município de Guaíba;

e) embora seja possível, como regra, a licitação dispensada para a doação de imóveis da Administração Pública, desde que cumpridos os requisitos legais (art. 17 da Lei nº 8.666/93), no caso de previsão de encargos, como os do art. 2º, caput, e art. 3º, incisos II, III e IV, a Lei de Licitações prevê como indispensável o devido processo licitatório, sob pena de nulidade, exceto quando esses ônus não possam ser cumpridos, justificadamente, por qualquer outro interessado em seleção competitiva, por se relacionarem ao donatário ou à sua específica atividade social;

f) o “encargo” do art. 3º, inciso I, do Projeto de Lei nº 020/2019 é, na realidade, uma contraprestação por parte do donatário, visto que consiste na construção e/ou edificação de um prédio comercial térreo, com área de até 500m², destinado a substituir o antigo abrigo de tratamento de cães com instalação de um centro de zoonoses, sendo proporcionalmente muito menos extenso do que o benefício recebido, o que vem a desnaturar a doação e transformá-la em outro negócio jurídico, possivelmente permuta entre dois imóveis por natureza e um imóvel por acessão física artificial, caso os valores sejam próximos, o que, pela regra do art. 30, § 2º, da Lei nº 9.636/1998, exigiria procedimento licitatório, pela viabilidade de competição.

Por essas razões, manifesta-se a Procuradoria Jurídica, no momento, pela inviabilidade do Projeto de Lei nº 020/19 nos termos em que foi redigido, devendo ser observadas as considerações das alíneas “d”, “e” e “f” da conclusão.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 30 de maio de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS n.º 110.114B

JULIA ZANATA DAL OSTO

Procuradora

OAB/RS n.º 108.241



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