Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 051/2019
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel
     
PARECER : Nº 136/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a permissão para embarque e desembarque de passageiros com deficiência ou mobilidade reduzida fora dos pontos e das paradas oficiais"

1. Relatório:

O Vereador Miguel Crizel apresentou o Projeto de Lei nº 051/19 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a permissão para embarque e desembarque de passageiros com deficiência ou mobilidade reduzida fora dos pontos e das paradas oficiais no Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. Parecer:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

[...]

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei nº 051/2019 objetiva estabelecer o direito do usuário com deficiência ou mobilidade reduzida de optar pelo local mais acessível ao seu embarque ou desembarque nos veículos de transporte coletivo, para além das paradas obrigatórias e pré-determinadas contratualmente, por razões de conforto e bem-estar. Tais medidas se inserem na competência municipal e estão alinhadas aos objetivos de proteção previstos na Constituição Estadual Gaúcha.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. Isso porque o texto constitucional determina a obrigação do Estado, em sentido amplo, de oferecer condições de segurança, conforto e bem-estar às pessoas com deficiência, sendo esse o objetivo principal da norma que se pretende instituir. Nesse sentido, refere o art. 23, inciso II, da CF/88: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

O Decreto nº 6.949, de 25/08/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – norma que, aliás, possui o status de emenda constitucional –, prevê, no artigo 4º, 1, que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência”, comprometendo-se a: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.”

A mesma convenção internacional, que integra o texto constitucional por ter sido aprovada na forma do art. 5º, § 3º, da CF/88, define pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” (artigo 1).

Da mesma forma, no âmbito infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelece, no artigo 2º: “Considera-se pessoa com deficiência aquele que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Prevê, ainda, o art. 8º do Estatuto, a respeito do direito à acessibilidade:

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Desse modo, a partir da introdução, na Constituição Federal de 1988, de todas as normas previstas na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o conceito de pessoa com deficiência foi ampliado, abrangendo não só as condições previstas no art. 5º do Decreto nº 5.296/04, como também todo impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que possa obstruir a participação da pessoa na sociedade em igualdade de condições com os demais.

Ocorre, entretanto, que o Projeto de Lei nº 051/19, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. A proposição esbarra no disposto no art. 61, § 1º, da Constituição Federal, que estabelece a iniciativa privativa para a deflagração do processo legislativo, fixando as disciplinas próprias do Presidente da República, aplicáveis por simetria aos demais entes federados, entre eles o Município de Guaíba:

Art. 61 (...)

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

(...)

O conteúdo normativo do Projeto de Lei nº 051/2019, do Poder Legislativo, invade a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no aludido art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao regulamentar serviço público que é de responsabilidade e atribuição do Executivo. O serviço público de transporte coletivo conta necessariamente com certa regulamentação para a sua execução e eficiência, podendo ser realizado diretamente ou mediante delegação a terceiros, neste caso precedida da indispensável licitação. No caso de Guaíba, o serviço é, de fato, delegado a empresas selecionadas por procedimento licitatório, perfazendo-se a relação por contrato administrativo, com cláusulas fixas sobre a forma de prestação do serviço, que até podem ser alteradas unilateralmente, mas apenas por iniciativa do próprio contratante (Poder Executivo).

Diante disso, a alteração das regras contratuais sobre a prestação do serviço não cabe ao Poder Legislativo, mas apenas ao Executivo, enquanto esfera de poder responsável pelo transporte público municipal.

Lembre-se que a medida é uma daquelas que tem aptidão para gerar o desequilíbrio do contrato administrativo, uma vez que a mudança dos momentos de parada pelo exercício da prerrogativa conferida às pessoas com deficiência e mobilidade reduzida pode acarretar alteração do tempo médio calculado aos percursos, assim como pode gerar custos adicionais não estabelecidos previamente e não contemplados na precisa proposta ofertada na licitação. Considerando isso, as eventuais alterações devem ser implementadas por ato exclusivo do Poder Executivo, sendo o Prefeito a única autoridade legitimada para tanto.

O conteúdo do Projeto de Lei nº 051/2019 também vai de encontro ao princípio constitucional da separação dos poderes, disposto no art. 2º da Constituição Federal. A matéria ofende a chamada reserva de administração, insculpida no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal e decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes, ao dispor a respeito da organização de serviços municipais, sobre os quais cabe ao Poder Executivo iniciar o processo legislativo ou implementar diretamente.

Não se pode esquecer, por fim, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Legislativo, uma vez que não cabe aos Vereadores a iniciativa para regulamentar a prestação do serviço público de transporte coletivo em âmbito municipal.

A propósito, destaca-se a jurisprudência:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL QUE REGULA O TRANSPORTE ESCOLAR NO MUNICÍPIO. MATÉRIA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VÍCIO DE INICIATIVA. É inconstitucional lei municipal, de iniciativa do Poder Legislativo, que regula o serviço público de transporte escolar, definindo o tipo de serviço, os usuários, os veículos utilizados e a modalidade do Alvará e a licença pelo Poder Público. Vício formal. Iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Ofensa aos artigos 60, II, letra ‘d’, e art. 82, II e VII, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (TJ-RS - ADI: 70044000081 RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Data de Julgamento: 06/08/2012, Tribunal Pleno, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 13/08/2012) 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88 e no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 22 de maio de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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