Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 043/2019
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 112/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a criação do canal "Disque Corrupção" no Município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 043/2019 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a criação do canal “Disque Denúncia” no Município de Guaíba. A proposição foi encaminhada a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o controle preventivo quanto à constitucionalidade.

2. Parecer:

Preliminarmente, verifica-se que a norma inscrita no artigo 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido – e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame perfunctório pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer todo o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução é efetuada mediante despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Quanto ao conteúdo da matéria proposta, verifica-se que pretende estabelecer nova atribuição ao Poder Executivo, no sentido de criar canal específico para denúncias de corrupção, sob a responsabilidade da Ouvidoria do Município, que ficará encarregada de encaminhar ao órgão competente as reclamações recebidas (arts. 1º e 2º). Ainda, segundo o art. 3º, autoriza-se a aquisição de linha telefônica específica, de três dígitos, para o recebimento das denúncias, sendo que tal ramal deverá ser amplamente divulgado. Por fim, cartazes poderão ser afixados nos órgãos públicos, com a informação de que será preservado o sigilo do denunciante (art. 4º).

A matéria invade de modo indevido a chamada reserva de administração, constante no art. 61, § 1º, da Constituição Federal de 1988, substância central do princípio da separação de poderes inscrito no art. 2º da CF/88, ao dispor a respeito de programa que deve ser implementado pelo Executivo para o recebimento de denúncias de corrupção, o que cabe exclusivamente ao gestor definir, através de atos próprios.

O Projeto de Lei nº 043/2019, ora em análise, vai de encontro, ainda, ao disposto no art. 60, II, “d”, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, bem como afronta o previsto no art. 82, VII, do mesmo diploma:

Art. 60 - São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

[...]

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Art. 82 - Compete ao Governador, privativamente:

[...]

VII - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual;

Nessa perspectiva, Hely Lopes Meirelles leciona que não cabe ao Poder Legislativo, através de sua iniciativa legiferante, imiscuir-se em matéria tipicamente administrativa, em respeito ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º da CF/88 e arts. 10 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul):

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a 'normativa', isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes, no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre a sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no Prefeito. Eis aí a distinção marcante entre missão 'normativa' da Câmara e a função 'executiva' do Prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. (...) A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF, art. 2º). Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. (...) Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em 'ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental.” (em "Direito Municipal Brasileiro", Malheiros, 1993, págs. 438/439).

A proposição trata, eminentemente, de disciplina tipicamente administrativa, a qual constitui atribuição político-administrativa do Prefeito, caracterizando inconstitucionalidade formal. Não cabe à lei de iniciativa parlamentar estabelecer os programas que devem ser realizados pelo Município para o recebimento de denúncias, por se tratar de matéria de competência privativa do Chefe do Executivo, na esfera de sua discricionariedade. Veja-se o precedente a seguir, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 1.794/2009 DO MUNICÍPIO DE ARROIO DO SAL/RS. CRIAÇÃO DE OUVIDORIAS DE SAÚDE NOS POSTOS DE SAÚDE DA REDE MUNICIPAL. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra "a" da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal (criação de Ouvidorias de Saúde nos Postos de Saúde da Rede Municipal), e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº 1.794/2009, do Município de Arroio do Sal/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70032003584, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 13/12/2010)

O Projeto de Lei nº 043/2019 apresenta, com base nos mesmos fundamentos, vício de iniciativa frente à Lei Orgânica Municipal de Guaíba, que, em seu art. 119, reserva a competência exclusiva ao Chefe do Poder Executivo Municipal nos projetos de lei que tratem da organização administrativa, inclusive quanto às atribuições dos órgãos públicos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Além disso, percebe-se a natureza meramente autorizativa da proposição, tendo em vista que objetiva conceder permissões ao Executivo para implementar mecanismos de recebimento de denúncias, programas de sua exclusiva responsabilidade. Tal medida pretende, sobretudo, contornar a limitação constitucional da iniciativa (art. 61, § 1º, CF e art. 60, CE/RS) para evitar a configuração de inconstitucionalidade formal, o que, entretanto, não tem essa aptidão.

Inclusive, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, é recorrente o entendimento de que projetos de lei com disposições autorizativas são inconstitucionais, tendo sido editada, em 1994, a Súmula de Jurisprudência nº 1, nos seguintes termos: “Projeto de lei, de autoria de Deputado ou Senador, que autoriza o Poder Executivo a tomar determinada providência, que é de sua competência exclusiva, é inconstitucional.” Na esfera da Comissão de Educação e Cultura e da Comissão de Finanças e Tributação, também já há precedentes e recomendações no sentido de rejeitar projetos de lei meramente autorizativos, por ainda assim violarem a regra de reserva de iniciativa.

Além do mais, é preciso destacar a falta de juridicidade nos projetos de lei simplesmente autorizativos. Para melhor esclarecer essa questão, registra-se a lição de Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, 27. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 163):

Lei, no sentido técnico desta palavra, só existe quando a norma escrita é constitutiva de direito, ou, esclarecendo melhor, quando ela introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas. (...) Nesse quadro, somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no Direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito.

Ou seja, a lei é, necessariamente, um instrumento de constituição de direitos ou de obrigações, sendo incompatível com a sua natureza a positivação de meras faculdades ou possibilidades, que acabam não tendo qualquer juridicidade. A lei, enquanto norma genérica, abstrata, imperativa e coercitiva, não admite simples concessões.

Conforme Márcio Silva Fernandes, titular do cargo de Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, no estudo “Inconstitucionalidade de projetos de lei autorizativos”,

O projeto autorizativo nada acrescenta ao ordenamento jurídico, pois não possui caráter obrigatório para aquele a quem é dirigido. Apenas autoriza o Poder Executivo a fazer aquilo que já lhe compete fazer, mas não atribui dever ao Poder Executivo de usar a autorização, nem atribui direito ao Poder Legislativo de cobrar tal uso.

A lei, portanto, deve conter comando impositivo àquele a quem se dirige, o que não ocorre nos projetos autorizativos, nos quais o eventual descumprimento da autorização concedida não acarretará qualquer sanção ao Poder Executivo, que é o destinatário final desse tipo de norma jurídica.

Assim, o Projeto de Lei nº 043/2019 incorre em inconstitucionalidade por configurar antijurídica “lei autorizativa”, que é considerada um meio inválido e ilegítimo de legislar por não possuir aptidão para constituir, com força de lei, qualquer direito ou dever. Nessa linha, assenta a jurisprudência do Tribunal de Justiça Gaúcho:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE HERVAL. LEI AUTORIZATIVA. MATÉRIA QUE VERSA SOBRE ORGANIZAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO. INICIATIVA PRIVATIVA DO PODER LEGISLATIVO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. 1. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, a Lei Municipal n° 1.101/2013, do Município de Herval, que dispõe sobre o transporte para locomoção de alunos de Herval para Arroio Grande/RS, por tratar de matéria cuja competência privativa para legislar é do Chefe do Executivo. 2. A expressão "fica o Poder Executivo Municipal autorizado a viabilizar transporte...", em que pese a louvável intenção do legislador, não significa mera concessão de faculdade ao Prefeito para que assim proceda, possuindo evidente caráter impositivo. 3. Violação ao disposto nos artigos 8º, 10, 60, inciso II, e 82, inciso VII, todos da Constituição Estadual. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70055716161, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgado em 28/10/2013)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 16/2007, DO MUNICÍPIO DE GUAPORÉ, QUE AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A CRIAR A "ESCOLA DE ARTES DA TERCEIRA IDADE" NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO. INICIATIVA PARLAMENTAR. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE QUE NÃO RESTA AFASTADO EM RAZÃO DE CONTER A LEI, EM SEU ART. 1º, AUTORIZAÇÃO AO PODER EXECUTIVO PARA CRIAR A ESCOLA DE ARTES DA TERCEIRA IDADE, PORQUE, DE OUTRAS DISPOSIÇÕES, DECORRE AO PREFEITO MUNICIPAL O DEVER DE ADOTAR PROVIDÊNCIAS QUE O VINCULAM, POR FIM, AO PROCEDIMENTO PRÓPRIO DE CRIAÇÃO DA ENTIDADE, COM INAFASTÁVEL DESPESA PÚBLICA, À MARGEM DE SUA INICIATIVA. O FATO DE SER AUTORIZATIVA A NORMA NÃO MODIFICA O JUÍZO DE SUA INVALIDADE POR FALTA DE LEGÍTIMA INICIATIVA. AFRONTA AOS ARTIGOS 8º, 10, 60, II, "D", 61, I, 82, II E VII, 149 E 154, I, TODOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL CARACTERIZADAS. [...] (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70022888234, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Osvaldo Stefanello, Julgado em 26/05/2008).

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito implemente a medida veiculada.

Conclusão:

Diante do exposto, com base nos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe – PL nº 043/19, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa (art. 61, § 1º, CF/88; art. 60, II, “d”, e art. 82, VII, da CE/RS), bem como afronta ao art. 119, inciso II, da Lei Orgânica Municipal. Nada impede, por outro lado, que o Executivo receba indicações no sentido de estabelecer a medida pela via política (art. 114, Regimento Interno).

Guaíba, 07 de maio de 2019.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS n.º 110.114B



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