Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 015/2019
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 037/2019
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Institui o dia municipal do Pastor Evangélico, a ser comemorado anualmente no segundo domingo do mês de junho"

1. Relatório:

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 015/19 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, o dia municipal do Pastor Evangélico, a ser comemorado, anualmente, no segundo domingo do mês de junho. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o exercício de controle quanto à constitucionalidade, à competência da Câmara e ao caráter pessoal das proposições.

2. Parecer:

Efetivamente, a proposição encontra respaldo no que diz respeito à autonomia e à competência legislativo do Município, insculpidas no artigo 18 da Constituição Federal de 1988, que garante a autonomia a este ente e no artigo 30 da CF/88, que garante a autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

 IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Alexandre de Moraes afirma que "interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União)". (in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 740).

O Projeto de Lei nº 015/2019 se insere, efetivamente, na definição de interesse local, na medida em que institui, no Município de Guaíba, o dia municipal do Pastor Evangélico. A fixação de datas comemorativas em âmbito municipal atende ao interesse local porque busca homenagear setores, grupos ou atividades relevantes para a comunidade, incentivando o debate e a reflexão.

Consoante tem sido o entendimento desta Procuradoria Jurídica nos pareceres aos Projetos de Lei n.º 099/2017, que instituiu o “Dia da Bíblia”, Projeto de Lei n.º 152/2017, que instituiu o “Dia da Marcha para Jesus” e o Projeto de Lei n.º 127/2018, tendo o presente Projeto de Lei pretendido estabelecer data comemorativa alusiva a entidade religiosa, importa estabelecer análise pormenorizada quanto à função orientadora do princípio da laicidade que informa a ordem constitucional da República Federativa do Brasil, questão complexa que envolve a apreciação de princípios constitucionais e de valores metajurídicos.

O princípio da laicidade é previsto no artigo 19 da Constituição Federal 1988:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Faz-se necessário amoldar ainda o pluralismo religioso aos ditames democráticos e ao princípio da laicidade, não cabendo a um Estado Democrático de Direito incentivar determinada religião. Nesse sentido, a liberdade de expressão e mais especificamente a liberdade de religião deve ter tratamento distinto no âmbito privado, em que todos são livres para exercerem sua religiosidade como preferirem, e no âmbito público, em que a religião deve ser tratada com completa imparcialidade, sem ofender o pluralismo e o respeito à liberdade de crença e de religião de todos. O Estado, para salvaguardar o pluralismo religioso e a liberdade de religião tem o dever de garantir que as instituições públicas e as políticas públicas permaneçam neutras, sem dar preferência a nenhuma religião ou culto. Assim, a matéria pretendida a principio não afronta a CF/88, desde que a organização e a promoção dos eventos não se dêem por parte da administração publica.

O princípio da laicidade e a neutralidade religiosa e ideológica do Estado pretende garantir o livre-arbítrio às pessoas para optar ou não entre os diversos credos ou religiões existentes, ampliando, tanto quanto possível, estas liberdades nos diversos contextos sociais e institucionais, favorecendo o pluralismo de ideias e proibindo condutas tais como: a doutrina forçada, a afirmação positiva de crenças ou a discriminação religiosa e/ou ideológica.[1] Assim, o Estado deve proteger tanto a posição jurídica de preservação do princípio da laicidade quanto à posição jurídica de proteção ao direito de liberdade de crença.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que a defesa do princípio do secularismo consiste em um dos princípios fundamentais dos Estados em respeito aos direitos dos indivíduos, sendo considerada a laicidade necessária para a proteção do estado democrático. A instituição de datas oficiais que promovam a comemoração de símbolos e/ou entidades religiosas pode ser considerada, nesses termos, contrária aos princípios do secularismo e da laicidade, se ocorresse favorecimento com recursos públicos a tais eventos.

Assim, consideramos que em respeito ao direito fundamental de liberdade de crença e religião o Estado possui deveres eminentemente de natureza negativa, devendo abster-se de incentivar ou mesmo promover mesmo que indiretamente determinadas religiões. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entendeu que a dimensão negativa da liberdade de consciência e de religião não se satisfaz apenas com a simples ausência de símbolos religiosos, mas que contempla também as práticas e símbolos que expressam uma crença, uma religião ou o ateísmo, devendo o Estado ter especial atenção e proteção para não expressar uma convicção religiosa. Essa abstenção evita ainda que o poder público adentre em eventuais tensões de ordem religiosa. Levando em conta tal dimensão negativa e o dever de não estabelecer preferências ou promoção de convicções religiosas, a jurisprudência de nossos tribunais tem sido no sentido de que nada impede que seja criada data comemorativa com esse intuito. Lapidar a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo quanto à Lei que institui como evento cultural do município de Suzano o Dia da Bíblia, estabelecendo ainda a inexistência de vício de competência ou de iniciativa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei que institui como evento cultural oficial do município de Suzano o Dia da Bíblia – Ato normativo que cuida de matéria de interesse local – Mera criação de data comemorativa. Constitucionalidade reconhecida. Não ocorrência de vício de iniciativa do projeto de lei por vereador. Norma editada que não estabelece medidas relacionadas à organização da administração pública, nem cria deveres diversos daqueles genéricos ou mesmo despesas extraordinárias. Ação de Inconstitucionalidade julgada improcedente. ...Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive a fixação de datas comemorativas, e de suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II, da CF). A fixação de datas comemorativas por lei municipal não excede os limites da autonomia legislativa de que foram dotados os municípios." (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 0140772-62.2013.8.26.0000, Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Rel. Antonio Carlos Malheiros, j. 23/10/2013).

E ainda jurisprudência do TJ-SP em ação direta de inconstitucionalidade que atacou a lei nº 11.212/2015, do Município de Sorocaba, que instituiu a “Semana Municipal da Cultura Cristã”.

A linha da Orientação Técnica do IGAM nº 29.220/2018, em que pese contrária ao Projeto de Lei n.º 141/2018, vai de encontro ao que orientou o mesmo instituto na OT n.º 24.716/2018, de 12 de setembro de 2018, que concluiu pela viabilidade jurídica de Projeto com teor semelhante, que pretendia instituir semana em homenagem a figuras religiosas.

            Identificaram-se diversos casos em que o Ministério Público ingressou com ação civil pública em casos em que o poder público participou da organização de eventos de cunho religioso instituídos por lei, como, por exemplo, na Apelação Cível 0141339-06.2007.8.26.0000 (994.07.141339-3) do TJ-SP; Justiça Estadual de São Paulo, Ação Civil Publica nº 533.01.2011.011832-9, também por ferirem o disposto no art. 19, I da CF/88. O MP-RS tem também investigado a realização de tais eventos:

Processo nº IC.00739.00078/2012: assunto: Lei Municipal criando Marcha para Jesus. Atuo no serviço público e como profissional liberal. Observando o Diário Oficial do Município de Canoas me deparei com a LEI Nº 5.629, DE 27 DE OUTUBRO DE 2011, que Inclui no Calendário Oficial do Município de Canoas o evento "MARCHA PARA JESUS". Se não fosse estranho ainda há dispositivo obrigando o Município a colaborar com o evento. Creio que mesmo não havendo imposição de feriado, há flagrante desrespeito a nossa Constituição. Não cabe ao Município organizar eventos ecumênicos, muito menos incluir manifestações puramente religiosas no calendário oficial. Creio que seja mais um pedido de informação do que uma denúncia, mas este Município esta permeado de atos sem fundamento legal, e não gostaria que os servidores de carreira compactuassem com isso. Local: Canoas. Investigado: Município de Canoas.

O Conselho Nacional do Ministério Publico produziu importante documento intitulado EM DEFESA DO ESTADO LAICO – Pratica Processual, do ano de 2014, disponível no link http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/ESTADO_LAICO_Volume_2__web.PDF, que traz ações civis públicas, réplicas, razões e contrarrazões de recursos e, inclusive, representação para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade, todas elas com um traço em comum: a defesa da laicidade do Estado e a busca pela garantia do direito de crença e de não crença.

Em relação à matéria de fundo do Projeto de Lei ora em análise, no caso especifico, não houve previsão de inclusão da data no calendário oficial, não havendo afronta, assim, ao principio da laicidade, bem como não há previsão de gastos públicos com a organização do evento, o que garante a isonomia da administração pública ante os diferentes cultos e religiões.

No que diz respeito à instituição de datas comemorativas alusivas a figuras ou símbolos religiosos, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal analisou a constitucionalidade de lei que instituiu o Dia do Evangélico, tendo assentado o entendimento de que não houve afronta ao principio da laicidade. No julgamento da AC 20010110875766 DF pela 4ª Turma Cível, o TJ/DF entendeu ser constitucional o feriado associando a ele o exercício regular de direito de culto religioso (art. 5º, VI da CF/88). Da decisão extrai-se o seguinte ponto digno de nota, sublinhando ainda que o ordenamento jurídico brasileiro admite inclusive a instituição de feriados religiosos:

“1 -- A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NO ART. 19, I, VEDA A UNIÃO, OS ESTADOS, O DISTRITO FEDERAL E OS MUNICÍPIOS, ESTABELECER CULTOS RELIGIOSOS OU IGREJAS, SUBVENCIONÁ-LOS, EMBARAÇAR-LHES O FUNCIONAMENTO OU MANTER COM ELES OU SEUS REPRESENTANTES RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA OU ALIANÇA. 2 -- NÃO PROÍBE QUE ALGUM DESSES ENTES DA FEDERAÇÃO, NO EXERCÍCIO DE SUA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, INSTITUA DATA COMEMORATIVA, A EXEMPLO DO QUE FEZ O DISTRITO FEDERAL, QUANDO INSTITUIU O DIA DO EVANGÉLICO. 3 -- NÃO É, PORTANTO, INCONSTITUCIONAL LEI ASSIM EDITADA. E OS ATOS COMETIDOS COM BASE NELA SÃO VÁLIDOS, COMO SÓI ACONTECER COM A COMEMORAÇÃO DO DIA DO EVANGÉLICO QUE SE CARACTERIZA EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO -- O DE CULTO RELIGIOSO (CF, ART. 5º, VI). E QUEM EXERCE UM DIREITO, SALVO ABUSO, NÃO CAUSA DANO A OUTREM (CC, ART. 160, I). 4 -- VISLUMBRAR EM SITUAÇÕES QUE TAL PRECONCEITO OU DISCRIMINAÇÃO É EMPRESTAR RAZÃO À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, PRAGA QUE, AO LONGO DA HISTÓRIA, TEM FEITO E CONTINUA FAZENDO INÚMERAS VÍTIMAS. 5 - APELAÇÃO NÃO PROVIDA.

Por outro lado, de se observar que instituir data comemorativa, religiosa, cívica ou atinente a alguma manifestação cultural, como ocorre com o carnaval, não configura discriminação ou preconceito. Sem qualquer razão de ser, portanto, a invocação da L. 9.459/97. Registre-se ainda que da mesma maneira que se instituiu, por lei, no âmbito do Distrito Federal, feriado no dia 30 de novembro, data comemorativa do dia do evangélico, vários são outros dias do ano, por tradição da religião católica, considerados feriados nacionais, em comemoração a algum dia santo, a exemplo dos feriados da Semana Santa, Corpus Christi, Nossa Senhora da Aparecida, Natal, para não dizer dos feriados municipais em comemoração ao dia da santa ou santo padroeiro da cidade. São dias dedicados à oração, peregrinação, meditação e reflexão dos católicos, mas que os crédulos de outras religiões, a exemplo dos evangélicos, não podem sentir constrangimento, vergonha, humilhação ou que estão sendo desmoralizados, porque obrigados a escutar referências a respeito da data comemorativa... De se observar, portanto, que a instituição do ferido religioso comemorativo ao dia do Evangélico está em perfeita harmonia com a Constituição Federal e com a legislação específica que rege a matéria.” (TJ-DF AC 20010110875766 DF; 4ª Turma Cível, o TJ/DF. Data de publicação: 27/02/2002.)

[1] Jónatas Machado (2013, p. 137) afirma que, a partir disso e dos princípios subjacentes ao Estado Constitucional, não se deduz uma absoluta neutralidade religiosa e nem um dever de igualdade de tratamento de doutrinas, ritos ou símbolos.

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria Jurídica opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 015/19, por inexistirem vícios de natureza material ou formal que impeçam a sua deliberação em Plenário, feita a advertência da impossibilidade de inclusão da data no calendário oficial e de subvenção pública a tais eventos.

É o parecer.

Guaíba, 12 de fevereiro de 2019.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador-Geral

OAB/RS nº 107.136



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