Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 157/2018
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 374/2018
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Cria o Programa de Prevenção e Combate ao Bullying nas Escolas Municipais"

1. Relatório:

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 157/2018 à Câmara Municipal, dispondo sobre a criação do Programa de Prevenção e Combate ao Bullying nas Escolas Municipais. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

As medidas de prevenção e de combate que se pretendem instituir no âmbito do Município de Guaíba se inserem, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 227, CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22, CF), o Projeto de Lei nº 157/18 estabelece meios de proteção à infância e à juventude contra a prática de atos de violência física ou psicológica intencionais e repetitivos, cabendo ao Estado, à família e à sociedade coibir tais condutas de modo absolutamente prioritário.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 157/2018 é promover a proteção dos interesses das crianças e dos adolescentes, por meio de medidas de prevenção e de combate ao bullying, o que se alinha aos deveres estabelecidos na Constituição.

O artigo 227, caput, da Constituição Federal prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas destinadas à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratadas como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º e 5º do referido Estatuto indicam, resumidamente, todos os direitos garantidos às crianças e adolescentes. Veja-se:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

É perceptível, pois, que as medidas pretendidas no Projeto de Lei nº 157/18 são compatíveis com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

Quanto à iniciativa do processo legislativo, registra-se que, para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que “Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos.” (ARE 878.911/RJ, Rel.: Min. Gilmar Mendes, p. em 11/10/2016).

Contudo, conforme bem destacou o IGAM na orientação técnica nº 34.403/18, “o texto projetado traz meritória preocupação com os alunos e educadores que possam ser atingidos pela violência, porém, as medidas devem ser tomadas pelo Poder Executivo, o que remete ao vício de iniciativa e afronta ao princípio da independência entre os poderes.”

Sabe-se que, em 22 de dezembro de 2017, através de parecer emitido no Projeto de Lei nº 122/17, o servidor que subscreve orientou no sentido de ser apresentado substitutivo com os termos propositivos ora em análise. No entanto, já passado um ano, e considerando as frequentes pesquisas de jurisprudência do Tribunal de Justiça Gaúcho e do STF feitas durante esse período para a análise de dezenas de proposições, chega-se à conclusão inevitável de que o projeto contém vício de iniciativa, em especial quanto aos arts. 5º, 6º e 7º, diante de sua natureza autorizativa, o que não elimina a inconstitucionalidade.

Os arts. 5º, 6º e 7º criam permissão ao Executivo para estabelecer medidas de prevenção e combate ao bullying. As disposições de natureza meramente autorizativa têm por finalidade contornar a limitação constitucional da iniciativa (art. 61, § 1º, CF e art. 60, CE/RS) para evitar a configuração de inconstitucionalidade formal, o que, entretanto, não tem essa aptidão.

Inclusive, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, é recorrente o entendimento de que projetos de lei com disposições autorizativas são inconstitucionais, tendo sido editada, em 1994, a Súmula de Jurisprudência nº 1, nos seguintes termos: “Projeto de lei, de autoria de Deputado ou Senador, que autoriza o Poder Executivo a tomar determinada providência, que é de sua competência exclusiva, é inconstitucional.” Na esfera da Comissão de Educação e Cultura e da Comissão de Finanças e Tributação, também já há precedentes e recomendações no sentido de rejeitar projetos de lei meramente autorizativos, por ainda assim violarem a regra de reserva de iniciativa.

Além do mais, é preciso destacar a falta de juridicidade nos projetos de lei simplesmente autorizativos. Para melhor esclarecer essa questão, registra-se a lição de Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, 27. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 163):

Lei, no sentido técnico desta palavra, só existe quando a norma escrita é constitutiva de direito, ou, esclarecendo melhor, quando ela introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas. (...) Nesse quadro, somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no Direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito.

Ou seja, a lei é, necessariamente, um instrumento de constituição de direitos ou de obrigações, sendo incompatível com a sua natureza a positivação de meras faculdades ou possibilidades, que acabam não tendo qualquer juridicidade. A lei, enquanto norma genérica, abstrata, imperativa e coercitiva, não admite simples concessões.

Conforme Márcio Silva Fernandes, titular do cargo de Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, no estudo “Inconstitucionalidade de projetos de lei autorizativos”,

O projeto autorizativo nada acrescenta ao ordenamento jurídico, pois não possui caráter obrigatório para aquele a quem é dirigido. Apenas autoriza o Poder Executivo a fazer aquilo que já lhe compete fazer, mas não atribui dever ao Poder Executivo de usar a autorização, nem atribui direito ao Poder Legislativo de cobrar tal uso.

A lei, portanto, deve conter comando impositivo àquele a quem se dirige, o que não ocorre nos projetos autorizativos, nos quais o eventual descumprimento da autorização concedida não acarretará qualquer sanção ao Poder Executivo, que é o destinatário final desse tipo de norma jurídica.

Assim, em que pese o seu grande mérito, o Projeto de Lei nº 157/18 incorre em inconstitucionalidade por criar programa dirigido às escolas da rede pública municipal e por conter disposições com natureza autorizativa (arts. 5º, 6º e 7º), as quais, como visto, não são aptas a constituir direitos e/ou deveres. Vale ressaltar que, ao longo deste ano, inúmeros foram os momentos em que proposições foram devolvidas com base na presença de disposições autorizativas, citando-se, como exemplos, os Projetos nº 153/2018, 084/2018, 081/2018, 071/2018, 065/2018, 063/2018, 055/2018 e 047/2018.

Importante lembrar, ainda, que em âmbito federal a Lei nº 13.185, de 06 de novembro de 2015, institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), prevendo diretrizes e estabelecendo regras para a prevenção e o combate dessa prática. Por se tratar de norma nacional, o seu alcance atinge todo o território brasileiro, sendo possível, no caso de Guaíba, implementá-la diretamente, através de medidas pelo Poder Executivo. Nessa linha, é cabível a remessa de requerimentos e de indicações para provocar o Prefeito a cumprir as disposições da lei federal, que contém, em termos gerais, os mesmos contornos e objetivos do presente projeto.

Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a natureza opinativa do parecer jurídico, que não vincula, por si só, a manifestação das comissões permanentes e a convicção dos membros desta Câmara, e assegurada a soberania do Plenário, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe, pela caracterização de inconstitucionalidade formal por afronta à reserva de iniciativa (art. 60, II, “d”, CE/RS).

Vale ressaltar, contudo, que a Lei Federal nº 13.185/15, aplicável a todo o território nacional, estabelece inúmeras diretrizes, objetivos e medidas de prevenção e de combate ao bullying, nada impedindo que sejam remetidos requerimentos e indicações ao Poder Executivo no sentido de cobrar o cumprimento direto da norma, por já ser de responsabilidade de todos os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

É o parecer, salvo melhor juízo.

Guaíba, 20 de dezembro de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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