Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 135/2018
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 300/2018
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a obrigatoriedade de estabelecimentos públicos e privados voltados ao ensino ou recreação infantil e fundamental a capacitarem seu corpo docente e funcional em noções básicas de primeiros socorros"

1. Relatório:

O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 135/2018 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a obrigatoriedade de estabelecimentos públicos e privados voltados ao ensino ou recreação infantil e fundamental a capacitarem seu corpo docente e funcional em noções básicas de primeiros socorros. A proposta foi encaminhada à Procuradoria Jurídica pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do RI.

2. Parecer:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

[...]

A política de capacitação que se pretende instituir como obrigação no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 135/2018 objetiva garantir o direito à saúde de alunos das escolas da rede pública e privada municipal, notadamente no aspecto preventivo, o que encontra amparo no art. 23, II, da CF/88, que atribui tal responsabilidade a todos os entes federados indistintamente.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. A CF/88, no art. 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O art. 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Percebe-se, assim, que o PL nº 135/2018 está em consonância com o regramento constitucional do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do art. 5º da CF/88.

O projeto também é materialmente compatível com as normas constitucionais e legais de proteção da infância e juventude. O art. 227, caput, da CF/88 prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Mais especificamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), atendendo às diretrizes constitucionais, estabeleceu um verdadeiro conjunto de normas de garantia à proteção integral e absoluta das crianças e dos adolescentes, que passaram a ser tratados como efetivos sujeitos de direitos. Os artigos 3º, 4º e 5º do referido Estatuto indicam, resumidamente, todos os direitos garantidos às crianças e adolescentes. Veja-se:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

É perceptível, portanto, que a medida pretendida no Projeto de Lei nº 135/2018 é compatível com os interesses defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

Ocorre, no entanto, que o Projeto de Lei nº 135/2018, embora louvável no seu objeto, contém, em parte, vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60. São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

O Projeto de Lei nº 135/2018 acaba por instituir um programa de capacitação de servidores públicos municipais para a prestação de primeiros socorros nas escolas e demais estabelecimentos de ensino, o que envolve, portanto, a prática de atos de exclusiva alçada do Poder Executivo, enquanto titular dos serviços públicos municipais e responsável único pela organização do seu funcionamento. Lembre-se que escolas municipais têm a natureza jurídica de órgãos públicos do Executivo, de modo que as determinações para a capacitação de servidores devem partir unicamente do titular desse Poder, por se tratar de atos relacionados à gestão do serviço público.

Desse modo, apesar de honrosa sob o ponto de vista material, no que diz respeito aos estabelecimentos públicos, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos com tais obrigações compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa e pelos serviços públicos municipais.

A propósito, destaca-se a jurisprudência do TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO MUNICÍPIO DE VIAMÃO. INSTITUIÇÃO DE PROGRAMA DE HIGIENE BUCAL NA REDE DE ENSINO MUNICIPAL. INICIATIVA DA CÂMARA DE VEREADORES. VÍCIO FORMAL. MATÉRIA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA SIMETRIA E DA HARMONIA E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. Deve ser declarada inconstitucional a Lei Municipal n.° 3.893, de 16 de agosto de 2011, de iniciativa da Câmara de Vereadores, a instituir programa de higiene bucal na rede de ensino, pois impõe atribuições à Secretaria Municipal da Educação e interfere na organização e funcionamento da Administração, matéria de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. A inobservância das normas constitucionais de processo legislativo tem como consequência a inconstitucionalidade formal da lei impugnada, pois violados os princípios da simetria, da harmonia e independência entre os Poderes. Ofensa aos arts. 8º, 10, 60, 82 da Constituição Estadual e 61 da Constituição Federal. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70044693992, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 19/12/2011).

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 135/2018 contém vício de iniciativa, por dispor sobre um programa que envolve atribuições de órgão público, serviços públicos municipais e organização administrativa, matérias de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, do artigo 60, II, “d”, da CE/RS e dos artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica. Para que a proposta fique adequada aos comandos constitucionais e não possua qualquer resquício de inconstitucionalidade, sugere-se a apresentação de substitutivo nos moldes a seguir, caso seja de interesse do proponente:

SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 135/2018

Dispõe sobre a obrigatoriedade de estabelecimentos privados voltados ao ensino ou recreação infantil e fundamental a capacitarem seu corpo docente e funcional em noções básicas de primeiros socorros.

Art. 1º Fica instituída a obrigatoriedade de estabelecimentos privados voltados ao ensino ou recreação infantil e fundamental a capacitarem seu corpo docente e funcional em noções básicas de primeiros socorros.

Parágrafo único. O curso será de periodicidade anual e deverá ser atendido por todos os professores e funcionários das unidades de ensino e recreação supracitadas, sem prejuízo de suas atividades ordinárias.

Art. 2º Os cursos de capacitação em primeiros socorros serão ministrados por entidades especializadas em práticas de auxílio imediato e emergencial à população, tendo como objetivo:

I – identificar e agir preventivamente em situações de emergências e urgências médicas;

II – intervir no socorro imediato do acidentado até que o suporte médico especializado, local ou remoto, torne-se possível.

§ 1º O conteúdo dos cursos de primeiros socorros básicos ministrados deverão ser condizentes com a natureza e faixa etária do público atendido pelos estabelecimentos de ensino ou recreação.

§ 2º As unidades de ensino ou recreação da rede particular deverão disponibilizar kits de primeiros socorros, conforme orientação das entidades especializadas em atendimento emergencial à população.

Art. 3º O Poder Executivo regulamentará, no que couber, a presente Lei.

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

É importante destacar, por fim, que a mesma obrigação que se pretende instituir por esta proposição está muito próxima de ingressar no ordenamento jurídico nacional através de lei federal ordinária, já que aprovado, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, projeto de lei instituindo “a obrigatoriedade de os estabelecimentos de ensino das redes públicas e privada voltados à educação infantil e à educação básica e os estabelecimentos de recreação infantil capacitarem profissionais do seu corpo docente ou funcional em noções básicas de primeiros socorros.” A proposição foi remetida para sanção ou veto do Presidente da República em 18 de setembro de 2018, conforme consulta no site do Senado[1], estando no prazo constitucional para a prática do ato.

Nesses termos, considerando que o projeto de lei aprovado no Congresso Nacional terá aplicabilidade a todos os entes federados (União, Estados, DF e Municípios), além de abranger estabelecimentos públicos e privados, é de se refletir, por parte do proponente, inclusive, a respeito da necessidade e da conveniência da proposta ora em análise, visto que, muito possivelmente, em breve haverá lei federal dispondo sobre o mesmo dever, até mesmo com maiores detalhamentos.

[1] Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132751>.

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, no artigo 60, II, “d”, da CE/RS e nos artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica, relativamente a trechos dos arts. 1º, caput, 2º, caput e §§ 2º e 3º, além dos arts. 4º e 5º. Sugere-se proposta de substitutivo a fim de adequar a proposição aos comandos constitucionais.

Por fim, tendo em vista que há proposição legislativa aprovada no Congresso Nacional e remetida ao Presidente da República para fins de sanção ou veto, conforme link de consulta no Senado Federal, dispondo sobre a mesma obrigação em todo o território nacional e alcançando todos os estabelecimentos da educação infantil, básica e de recreação infantil, alerta-se o proponente para que reflita a respeito da necessidade e da conveniência da proposta ora em análise, já que, muito possivelmente, em breve haverá lei federal dispondo sobre o mesmo dever, com maiores detalhamentos e maior abrangência.

Guaíba, 1º de outubro de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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