Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Veto Parcial n.º 049/2018
PROPONENTE : Executivo Municipal
     
PARECER : Nº 266/2018
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Veto total ao Projeto de Lei n.º 049/2018 que Institui o Programa Matrícula Transparente no âmbito do município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 049/2018 à Câmara Municipal, objetivando instituir o programa matrícula transparente no âmbito do Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. Após substitutivo e pareceres jurídicos favoráveis, com ampla fundamentação, a proposição foi aprovada em sessão plenária, a qual, todavia, recebeu veto total pelo Chefe do Executivo, remetido para análise jurídica.

2. Parecer:

Inicialmente, é preciso lembrar que a problemática da iniciativa no processo legislativo é notadamente complexa, em especial porque a CF/88 e a CE/RS, nos arts. 61, § 1º, e 60, respectivamente, trazem conceitos jurídicos indeterminados para explicar aquilo que se encontra sob a reserva de administração. No entanto, tendo em vista a atual jurisprudência do STF e as mudanças de orientação no TJRS a respeito de iniciativa no processo legislativo, é necessário interpretar os dispositivos de modo taxativo, sem estender ou ampliar o campo de restrições, já que compreensões significativamente limitantes desvirtuam e engessam uma das mais importantes funções do Poder Legislativo: a de legislar.

A propósito disso, o servidor que ora subscreve o parecer jurídico participou de curso ministrado no IGAM – Instituto Gamma de Assessoria a Órgãos Públicos, nos dias 01, 02 e 03 de agosto de 2018, intitulado “CIElegis – Módulo I – O exercício da iniciativa de projeto de lei por vereador, a partir da interpretação do Supremo Tribunal Federal”, no qual foram amplamente discutidos casos já julgados pelo STF sobre iniciativa do processo legislativo, concluindo-se que a atual jurisprudência tende a compreendê-la e a aplicá-la de modo cada vez mais amplo, permitindo uma maior atuação do legislador.

Aliás, leis municipais que, até então, vinham sendo julgadas inconstitucionais por vício de origem passaram a ser consideradas como de possível deflagração por membro do Legislativo, especialmente quando possuem um conteúdo muito intenso de valores constitucionais. A exemplo, já foram tidas como constitucionais leis municipais, de iniciativa parlamentar, que determinaram ao Poder Executivo a publicação, em seu site institucional, de contratos e atos administrativos, bem como de listas de espera para vagas em creche/escola ou para atendimento clínico no SUS.

No presente caso, embora aparentemente a medida legislativa possa influenciar reflexamente a atividade administrativa, é notório que sua matéria traz conteúdos significativos da Constituição Federal e da Constituição Estadual, em especial a aplicação dos princípios da publicidade e da transparência da gestão pública. Assim, entendendo-se pela ausência de vício de iniciativa, reiteram-se os argumentos do parecer jurídico no PL nº 049/18:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida pretendida por meio do Projeto de Lei nº 049/2018 se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22, CF/88), a proposta estabelece um novo instrumento de garantia dos direitos à publicidade e à transparência da gestão pública, diretrizes que possuem amparo constitucional nos princípios da administração pública (artigo 37, caput, CF/88).

Quanto à matéria de fundo, não há qualquer violação ao conteúdo material da CF/88 e da CE/RS. A Constituição Federal, no artigo 37, prevê: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. Mais especificamente sobre a matéria, o § 3º, II, do art. 37 da CF/88 estabelece um comando para que a lei infraconstitucional discipline “as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII”.

A Constituição Estadual, por sua vez, dispõe no art. 19: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação...”

Impossível também deixar de recordar o artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, que prevê o direito fundamental ao acesso à informação: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Percebe-se, portanto, que o Projeto de Lei nº 049/18 está em consonância com o regramento constitucional sobre transparência da gestão pública. Além disso, a determinação que se pretende instituir também encontra amparo na legislação infraconstitucional. A Lei Federal nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, regula o direito ao acesso a informações previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, disciplinando os procedimentos a serem observados pela União, Estados, DF e Municípios para a garantia dessa prerrogativa pública. Importante, nesse caso, transcrever o art. 3º, que institui as diretrizes da publicidade das informações de interesse coletivo ou geral:

Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:

I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;

II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;

III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;

IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;

V - desenvolvimento do controle social da administração pública.

Assim, sob os aspectos da competência e da conformidade material da proposta com a Constituição Federal de 1988 e com a Constituição Estadual Gaúcha, não se vê a ocorrência de obstáculos à tramitação.

Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste Procurador sobre a matéria, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade.

A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado.

A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente.

Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro.

Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12).

Assim, as hipóteses de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III.

O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148).

O artigo 61, § 1º, da CF/88, assim como o artigo 60, II, “d”, da CE/RS não prevê restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo a obrigação de o Poder Público assegurar publicidade às listagens de sorteados e suplentes para as vagas em creches e escolas da educação infantil e do ensino fundamental.

A propósito, essa específica matéria já foi levada a julgamento em ações diretas de inconstitucionalidade, cujo questionamento versou, exatamente, sobre a existência de vício formal de origem (reserva de iniciativa da proposta ao Chefe do Executivo) na instituição do dever de dar publicidade às listagens de vagas na rede pública de ensino.

O TJRS recentemente julgou constitucional a Lei Municipal nº 2.976/16, de Novo Hamburgo, de iniciativa parlamentar, que dispôs sobre a obrigatoriedade da divulgação da capacidade de atendimento, lista nominal das vagas atendidas, total de vagas disponíveis e a lista de espera das vagas para a educação infantil no Município. Importante trazer à tona a ementa do referido acórdão, muito esclarecedora:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO. LEI 2.976/2016. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE INICIATIVA. DIVULGAÇÃO DA CAPACIDADE DE ATENDIMENTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL MUNICIPAL. 1. A Lei 2.976/2016, que "dispõe sobre a determinação da divulgação da capacidade de atendimento, lista nominal das vagas atendidas, total de vagas disponíveis, e a lista de espera das vagas para a Educação Infantil no Município, e dá outras providências", conquanto deflagrada por iniciativa da Câmara Municipal, não conduz a vício de natureza formal do diploma em tela. 2. Diploma legal que não disciplina o conteúdo, a forma de prestação ou as atribuições próprias do serviço público municipal relativo à educação infantil, cingindo-se a especificar a obrigação de divulgação e publicidade de informações acerca da capacidade de atendimento, vagas preenchidas e a preencher e critérios de classificação, cuja imperatividade já decorre do próprio mandamento constitucional constante do art. 37, caput, da CRFB. 3. Interpretação dos art. 60, inc. II, alínea d, e 82, inc. III e VII da Constituição Estadual que deve pautar-se pelo princípio da unidade da Constituição, viabilizando-se a concretização do direito fundamental à boa administração pública, em especial... aquela que se refere ao amplo acesso à educação pública infantil. 4. Necessidade de se evitar - quando não evidente a invasão de competência - o engessamento das funções do Poder Legislativo, o que equivaleria a desprestigiar suas atribuições constitucionais, de elevado relevo institucional no Estado de Direito. 5. Constitucionalidade da norma que se reconhece. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70072679236, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Paula Dalbosco, Julgado em 24/07/2017).

Como bem defendeu o Tribunal de Justiça Gaúcho, a lei que determinou a publicidade da listagem de vagas na educação infantil não regula a forma ou o conteúdo da prestação de serviços públicos, nem dispõe sobre as atribuições dos órgãos públicos, apenas garantindo a efetividade do direito fundamental ao acesso à informação e à transparência da atividade administrativa, razão por que inexiste violação às hipóteses de iniciativa reservada previstas constitucionalmente. Destacam-se, ainda, os seguintes trechos do acórdão gaúcho:

O que faz a lei, apenas e simplesmente, é dar concretude ao elementar princípio constitucional da publicidade dos atos administrativos – mais especificamente, aqueles tendentes à persecução da educação infantil – evidenciando o interesse público primário da população municipal de ter amplo acesso às informações acerca da capacidade de atendimento de cada escola de educação básica, do preenchimento das respectivas vagas e da existência de lista de espera, com a explicitação do respectivo critério para preenchimento.

[...]

A interpretação dos dispositivos que prevêem a competência privativa para iniciativa de lei – sobretudo aqueles que empregam conceitos jurídicos vagos, como “organização e funcionamento” da Administração – deve guardar harmonia com as demais normas de mesma estatura, não podendo desconsiderar o princípio da unidade da Constituição, que preconiza que o “intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais, não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.”

O mero fato de a norma se destinar ao Poder Executivo não contamina a proposta de vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que, como foi visto, as hipóteses de reserva de iniciativa previstas na CF/88 e na CE/RS não admitem interpretação ampliativa, por consistirem em exceções à regra geral da iniciativa concorrente. Caso se admitisse interpretação tão rígida, o Poder Legislativo ficaria, basicamente, de mãos amarradas, impedido de exercer uma de suas funções típicas. Obviamente, não é esse o interesse da Constituição, que apenas limita os casos de iniciativa nas hipóteses em que evidentemente houver usurpação da independência e harmonia dos demais poderes. Quanto a esse aspecto, traz-se excerto do acórdão já citado:

Conclui-se, portanto, que o simples fato de a norma estar direcionada ao Poder Executivo não implica, por si só, que ela deva ser de iniciativa do Prefeito Municipal, sob pena de nefasto engessamento do Poder Legislativo, em franco desprestígio à sua elevada função institucional no Estado de Direito. Ora, acaso toda a iniciativa de norma capaz de gerar algum tipo de despesa à Administração fosse reservada ao Chefe do Executivo, até mesmo a disciplina relativa ao nome de logradouros públicos seria suprimida do Poder Legislativo, tendo em vista a necessidade de confecção de novas placas, sua colocação nos locais próprios, etc. o que evidencia a insubsistência da premissa invocada.

Tampouco o diminuto custo a ser arcado pelo Município decorrente da implementação da lei poderia implicar algum tipo de empecilho à sua validade, pois a Administração pode se desonerar da obrigação de divulgação de forma bastante econômica e racional, já dispondo previamente de todo o aparato administrativo para a fiel execução do comando legal.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70074203860, também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente julgada pelo Tribunal Pleno (instância máxima do TJ) em 27 de novembro de 2017, julgou constitucional o art. 1º, caput e §§ 1º e 2º, da Lei Municipal nº 7.739/2017, de Santa Cruz do Sul, que estabelece a obrigatoriedade de divulgação de lista contendo a ordem de espera para vagas nas escolas municipais de educação infantil. Veja-se a ementa do acórdão, no que concerne à divulgação das listas:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N.º 7.739/2017, DE SANTA CRUZ DO SUL. [...] 2. IMPOSIÇÃO DE MERA DIVULGAÇÃO DA LISTA DE ESPERA. VÍCIO DE INICIATIVA. INOCORRÊNCIA. CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA TRANSPARÊNCIA E PUBLICIDADE DA ADMINSTRAÇÃO PÚBLICA. DIREITO FUNDAMENTAL À OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES. PARTICIPAÇÃO POPULAR. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 5º, XXXIII, 37, CAPUT, E §3º, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E ART. 19, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. PRECEDENTES. [...] 2. Longe de disciplinar a forma de prestação dos serviços públicos na área da educação ou imiscuir-se indevidamente nas atribuições dos cargos do quadro de pessoal e órgãos da municipalidade, as normas extraídas do art. 1º, caput, §§ 1º e 2º da Lei nº 7.739, do Município de Santa Cruz do Sul, dão concreção ao princípio da transparência, decorrência da própria idéia de Estado Democrático de Direito e, em especial, do contido nos arts. 5º, XXXIII (regulamentado pela Lei n.º 12.527/2011), 37, caput, e §3º, II, da Constituição Federal, reproduzido pelo art. 19, caput, da Constituição Estadual, tratando do direito fundamental à obtenção de informações de caráter público e da observância ao princípio da publicidade administrativa. Ao Poder Legislativo, a quem compete exercer o controle externo dos atos dos demais Poderes, afigura-se completamente possível criar obrigações e exigir a implementação de medidas com a finalidade de tornar a atuação pública mais transparente e próxima do cidadão, aproximando-se da almejada participação popular na Administração Pública, atendendo ao disposto na norma do art. 37, §3º, II, da Carta Magna. Reconhecida a constitucionalidade do art. 1º, §§ 1º e 2º da Lei Municipal n.º 7.739/2017. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIALMENTE PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70074203860, Tribunal Pleno, TJRS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em 27/11/2017)

Colaciona-se, ainda, julgado do TJMG sobre a mesma matéria, no qual se considerou constitucional a lei municipal instituindo ao Executivo dever de publicidade sobre vagas existentes em creches municipais:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI QUE DETERMINA A DIVULGAÇÃO DE LISTA DE ESPERA DE VAGAS EM CRECHES MUNICIPAIS - CONSTITUCIONALIDADE - INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE INICIATIVA - AUSÊNCIA DE AUMENTO DE DESPESA NÃO PREVISTA. - Tendo a lei por objeto apenas demonstrar a transparência e dar publicidade aos critérios utilizados para o preenchimento das vagas para crianças em creches municiais, através da publicação das listas por meio eletrônico, não há que se falar em vício de iniciativa, em especial quando verificado que inexiste criação de uma despesa que caracterize ofensa ao princípio da separação de poderes. (TJMG - Ação Direta Inconst. 1.0000.14.057101-9/000, Relator(a): Des.(a) Elias Camilo, ÓRGÃO ESPECIAL, julgamento em 27/04/2016, publicação da súmula em 03/06/2016)

Portanto, ainda que em propostas relativamente semelhantes tenha se defendido a ausência de segurança jurídica para a aprovação, diante de oscilação da jurisprudência, nessa matéria em destaque existem dois precedentes muito recentes do Tribunal de Justiça Gaúcho, um de 24/07/2017 e outro de 27/11/2017, com julgamento pelo órgão colegiado máximo (Tribunal Pleno) reconhecendo a conformidade de leis municipais que determinem a publicação, em site institucional, de listas sobre vagas em creches e escolas municipais. Tais precedentes específicos sobre a matéria asseguram a este servidor público maior segurança para lançar parecer jurídico em sentido favorável.

[1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>.

Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a prerrogativa do Prefeito para vetar projetos de lei, a Procuradoria opina pela constitucionalidade do texto aprovado no Projeto de Lei nº 049/2018, não se descartando, porém, a possibilidade de que, em eventual ação direta de inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça venha a reconhecer inconformidade com a Constituição Estadual, por adoção de entendimento diverso.

Guaíba, 10 de agosto de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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