PARECER JURÍDICO |
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"Veto total ao Projeto de Lei n.º 049/2018 que Institui o Programa Matrícula Transparente no âmbito do município de Guaíba e dá outras providências" 1. Relatório:O Vereador Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 049/2018 à Câmara Municipal, objetivando instituir o programa matrícula transparente no âmbito do Município de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. Após substitutivo e pareceres jurídicos favoráveis, com ampla fundamentação, a proposição foi aprovada em sessão plenária, a qual, todavia, recebeu veto total pelo Chefe do Executivo, remetido para análise jurídica. 2. Parecer:Inicialmente, é preciso lembrar que a problemática da iniciativa no processo legislativo é notadamente complexa, em especial porque a CF/88 e a CE/RS, nos arts. 61, § 1º, e 60, respectivamente, trazem conceitos jurídicos indeterminados para explicar aquilo que se encontra sob a reserva de administração. No entanto, tendo em vista a atual jurisprudência do STF e as mudanças de orientação no TJRS a respeito de iniciativa no processo legislativo, é necessário interpretar os dispositivos de modo taxativo, sem estender ou ampliar o campo de restrições, já que compreensões significativamente limitantes desvirtuam e engessam uma das mais importantes funções do Poder Legislativo: a de legislar. A propósito disso, o servidor que ora subscreve o parecer jurídico participou de curso ministrado no IGAM – Instituto Gamma de Assessoria a Órgãos Públicos, nos dias 01, 02 e 03 de agosto de 2018, intitulado “CIElegis – Módulo I – O exercício da iniciativa de projeto de lei por vereador, a partir da interpretação do Supremo Tribunal Federal”, no qual foram amplamente discutidos casos já julgados pelo STF sobre iniciativa do processo legislativo, concluindo-se que a atual jurisprudência tende a compreendê-la e a aplicá-la de modo cada vez mais amplo, permitindo uma maior atuação do legislador. Aliás, leis municipais que, até então, vinham sendo julgadas inconstitucionais por vício de origem passaram a ser consideradas como de possível deflagração por membro do Legislativo, especialmente quando possuem um conteúdo muito intenso de valores constitucionais. A exemplo, já foram tidas como constitucionais leis municipais, de iniciativa parlamentar, que determinaram ao Poder Executivo a publicação, em seu site institucional, de contratos e atos administrativos, bem como de listas de espera para vagas em creche/escola ou para atendimento clínico no SUS. No presente caso, embora aparentemente a medida legislativa possa influenciar reflexamente a atividade administrativa, é notório que sua matéria traz conteúdos significativos da Constituição Federal e da Constituição Estadual, em especial a aplicação dos princípios da publicidade e da transparência da gestão pública. Assim, entendendo-se pela ausência de vício de iniciativa, reiteram-se os argumentos do parecer jurídico no PL nº 049/18: O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida pretendida por meio do Projeto de Lei nº 049/2018 se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria não atrelada às competências legislativas privativas da União (artigo 22, CF/88), a proposta estabelece um novo instrumento de garantia dos direitos à publicidade e à transparência da gestão pública, diretrizes que possuem amparo constitucional nos princípios da administração pública (artigo 37, caput, CF/88). Quanto à matéria de fundo, não há qualquer violação ao conteúdo material da CF/88 e da CE/RS. A Constituição Federal, no artigo 37, prevê: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. Mais especificamente sobre a matéria, o § 3º, II, do art. 37 da CF/88 estabelece um comando para que a lei infraconstitucional discipline “as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII”. A Constituição Estadual, por sua vez, dispõe no art. 19: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação...” Impossível também deixar de recordar o artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, que prevê o direito fundamental ao acesso à informação: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Percebe-se, portanto, que o Projeto de Lei nº 049/18 está em consonância com o regramento constitucional sobre transparência da gestão pública. Além disso, a determinação que se pretende instituir também encontra amparo na legislação infraconstitucional. A Lei Federal nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, regula o direito ao acesso a informações previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CF/88, disciplinando os procedimentos a serem observados pela União, Estados, DF e Municípios para a garantia dessa prerrogativa pública. Importante, nesse caso, transcrever o art. 3º, que institui as diretrizes da publicidade das informações de interesse coletivo ou geral:
Assim, sob os aspectos da competência e da conformidade material da proposta com a Constituição Federal de 1988 e com a Constituição Estadual Gaúcha, não se vê a ocorrência de obstáculos à tramitação. Cabe, neste momento, enfrentar a questão da iniciativa para a propositura do projeto de lei. Para externar o entendimento deste Procurador sobre a matéria, foi utilizado, como base, o artigo “Limites da iniciativa parlamentar sobre políticas públicas: uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal”, de autoria de João Trindade Cavalcante Filho, representando o Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal[1]. O referido trabalho propõe uma visão atual sobre os limites à iniciativa parlamentar previstos na CF especialmente no que concerne à formulação de políticas públicas, com base em algumas decisões proferidas pelo STF em controle de constitucionalidade. A República Federativa do Brasil, tendo adotado o sistema constitucional de tripartição dos Poderes, dividiu as funções de legislar, administrar e julgar aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, todos independentes e harmônicos, na forma do artigo 2º da CF. No campo do Poder Legislativo, duas são, essencialmente, as funções típicas: a legislativa e a fiscalizadora, esta de natureza contábil, financeira, orçamentária e patrimonial sobre os atos do Poder Executivo. As funções executiva e jurisdicional, como a criação de normas de organização interna, provimento de cargos, realização de licitações, julgamento do Presidente da República nos crimes de responsabilidade pelo Senado Federal – no âmbito da União –, são exercidas de forma atípica pelo Poder Legislativo, com fundamento no sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”), que equilibra o exercício das tarefas públicas entre os Poderes de Estado. A Constituição Federal de 1988, com base na tripartição dos Poderes, disciplina a iniciativa parlamentar a partir do seu artigo 61, o qual prevê: “A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.” Assim, embora a função legislativa tenha sido entregue ao Poder Legislativo, a Constituição Brasileira conferiu o poder de iniciativa a autoridades do Executivo, do Judiciário, do MP e, inclusive, aos cidadãos diretamente. Por ser uma norma genérica que atribui, indistintamente, o poder de iniciativa para a deflagração do processo legislativo a várias autoridades, a doutrina a nomeia de “iniciativa comum” ou “iniciativa concorrente”, constituindo-se como regra a ser observada em todos os âmbitos da Federação, com base no princípio da simetria. O § 1º do artigo 61, por sua vez, apresenta os casos em que o poder de iniciativa é privativo do Chefe do Executivo, para que se mantenha a harmonia e a independência entre os Poderes. Ou seja, o objetivo real da restrição imposta no § 1º é a segurança do sistema de tripartição dos poderes constitucionais, de modo a que não haja interferências indevidas de um Poder sobre o outro. Dispõe o mencionado artigo 61, § 1º, da CF:
Dessas afirmações é possível extrair o seguinte entendimento: a iniciativa para a deflagração do processo legislativo, em regra, é comum. A iniciativa privativa, por ser uma norma de natureza restritiva, é exceção, sendo “válida, nesse ponto, a lição da hermenêutica clássica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva.” (CAVALCANTE FILHO, 2013, p. 12). Assim, as hipóteses de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo são apenas e tão somente aquelas previstas no texto constitucional: artigos 93, caput; 96, I e II; 127, § 2º; 51, IV; 52, XIII; 73, caput c/c 96; 61, § 1º; 165, I a III. O rol de iniciativas privativas do Chefe do Executivo, portanto, é estrito e não admite interpretação ampliativa; do contrário, ocorreria subversão e/ou perturbação do esquema organizatório funcional estabelecido na CF, base do princípio da conformidade funcional, que rege a interpretação dos dispositivos constitucionais. Em palavras mais simples, o intérprete da Constituição não pode chegar a uma conclusão que altere “a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelo constituinte originário, como é o caso da separação de poderes” (LENZA, 2011, p. 148). O artigo 61, § 1º, da CF/88, assim como o artigo 60, II, “d”, da CE/RS não prevê restrição expressa à deflagração de projeto de lei, por parlamentar, estabelecendo a obrigação de o Poder Público assegurar publicidade às listagens de sorteados e suplentes para as vagas em creches e escolas da educação infantil e do ensino fundamental. A propósito, essa específica matéria já foi levada a julgamento em ações diretas de inconstitucionalidade, cujo questionamento versou, exatamente, sobre a existência de vício formal de origem (reserva de iniciativa da proposta ao Chefe do Executivo) na instituição do dever de dar publicidade às listagens de vagas na rede pública de ensino. O TJRS recentemente julgou constitucional a Lei Municipal nº 2.976/16, de Novo Hamburgo, de iniciativa parlamentar, que dispôs sobre a obrigatoriedade da divulgação da capacidade de atendimento, lista nominal das vagas atendidas, total de vagas disponíveis e a lista de espera das vagas para a educação infantil no Município. Importante trazer à tona a ementa do referido acórdão, muito esclarecedora:
Como bem defendeu o Tribunal de Justiça Gaúcho, a lei que determinou a publicidade da listagem de vagas na educação infantil não regula a forma ou o conteúdo da prestação de serviços públicos, nem dispõe sobre as atribuições dos órgãos públicos, apenas garantindo a efetividade do direito fundamental ao acesso à informação e à transparência da atividade administrativa, razão por que inexiste violação às hipóteses de iniciativa reservada previstas constitucionalmente. Destacam-se, ainda, os seguintes trechos do acórdão gaúcho:
O mero fato de a norma se destinar ao Poder Executivo não contamina a proposta de vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que, como foi visto, as hipóteses de reserva de iniciativa previstas na CF/88 e na CE/RS não admitem interpretação ampliativa, por consistirem em exceções à regra geral da iniciativa concorrente. Caso se admitisse interpretação tão rígida, o Poder Legislativo ficaria, basicamente, de mãos amarradas, impedido de exercer uma de suas funções típicas. Obviamente, não é esse o interesse da Constituição, que apenas limita os casos de iniciativa nas hipóteses em que evidentemente houver usurpação da independência e harmonia dos demais poderes. Quanto a esse aspecto, traz-se excerto do acórdão já citado:
A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 70074203860, também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, recentemente julgada pelo Tribunal Pleno (instância máxima do TJ) em 27 de novembro de 2017, julgou constitucional o art. 1º, caput e §§ 1º e 2º, da Lei Municipal nº 7.739/2017, de Santa Cruz do Sul, que estabelece a obrigatoriedade de divulgação de lista contendo a ordem de espera para vagas nas escolas municipais de educação infantil. Veja-se a ementa do acórdão, no que concerne à divulgação das listas:
Colaciona-se, ainda, julgado do TJMG sobre a mesma matéria, no qual se considerou constitucional a lei municipal instituindo ao Executivo dever de publicidade sobre vagas existentes em creches municipais:
Portanto, ainda que em propostas relativamente semelhantes tenha se defendido a ausência de segurança jurídica para a aprovação, diante de oscilação da jurisprudência, nessa matéria em destaque existem dois precedentes muito recentes do Tribunal de Justiça Gaúcho, um de 24/07/2017 e outro de 27/11/2017, com julgamento pelo órgão colegiado máximo (Tribunal Pleno) reconhecendo a conformidade de leis municipais que determinem a publicação, em site institucional, de listas sobre vagas em creches e escolas municipais. Tais precedentes específicos sobre a matéria asseguram a este servidor público maior segurança para lançar parecer jurídico em sentido favorável. [1] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-122-limites-da-iniciativa-parlamentar-sobre-politicas-publicas-uma-proposta-de-releitura-do-art.-61-ss-1o-ii-e-da-constituicao-federal>. Conclusão:Diante do exposto, respeitada a prerrogativa do Prefeito para vetar projetos de lei, a Procuradoria opina pela constitucionalidade do texto aprovado no Projeto de Lei nº 049/2018, não se descartando, porém, a possibilidade de que, em eventual ação direta de inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça venha a reconhecer inconformidade com a Constituição Estadual, por adoção de entendimento diverso. Guaíba, 10 de agosto de 2018. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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