Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Veto Parcial n.º 052/2018
PROPONENTE : Executivo Municipal
     
PARECER : Nº 265/2018
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Veto Total ao Projeto de Lei n.º 052/2018 que Disciplina a utilização de "Milhagem" oriunda de passagens aéreas custeadas com recursos públicos e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 052/2018 à Câmara Municipal, objetivando disciplinar a utilização de milhagem oriunda de passagens aéreas custeadas com recursos públicos. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. Após substitutivo e pareceres jurídicos favoráveis, com ampla fundamentação, a proposição foi aprovada em sessão plenária, a qual, todavia, recebeu veto total pelo Chefe do Poder Executivo, remetido para fins de análise jurídica.

2. Parecer:

Inicialmente, é preciso lembrar que a problemática da iniciativa no processo legislativo é notadamente complexa, em especial porque a CF/88 e a CE/RS, nos arts. 61, § 1º, e 60, respectivamente, trazem conceitos jurídicos indeterminados para explicar aquilo que se encontra sob a reserva de administração. No entanto, tendo em vista a atual jurisprudência do STF e as constantes mudanças de orientação no TJRS a respeito de iniciativa no processo legislativo, é necessário interpretar os dispositivos de modo taxativo, sem estender ou ampliar o campo de restrições, visto que compreensões significativamente limitantes desvirtuam e engessam uma das mais importantes funções do Poder Legislativo: a de legislar.

A propósito disso, o servidor que ora subscreve o parecer jurídico participou de curso ministrado no IGAM – Instituto Gamma de Assessoria a Órgãos Públicos, nos dias 01, 02 e 03 de agosto de 2018, intitulado “CIElegis – Módulo I – O exercício da iniciativa de projeto de lei por vereador, a partir da interpretação do Supremo Tribunal Federal”, no qual foram amplamente discutidos casos já julgados pelo STF sobre iniciativa do processo legislativo, concluindo-se que a atual jurisprudência tende a compreendê-la e a aplicá-la de modo cada vez mais amplo, permitindo uma maior atuação do legislador.

Aliás, leis municipais que, até então, vinham sendo julgadas inconstitucionais por vício de origem passaram a ser consideradas como de possível deflagração por membro do Legislativo, especialmente quando possuem um conteúdo muito intenso de valores constitucionais. A exemplo, já foram tidas como constitucionais leis municipais, de iniciativa parlamentar, que determinaram ao Poder Executivo a publicação, em seu site institucional, de contratos e atos administrativos, bem como de listas de espera para vagas em creche/escola ou para atendimento clínico no SUS.

No presente caso, embora aparentemente a medida legislativa possa influenciar reflexamente a atividade administrativa, é notório que sua matéria traz conteúdos significativos da Constituição Federal e da Constituição Estadual, mormente moralidade administrativa, impessoalidade e economicidade, já havendo decisões, inclusive, do TCU sobre a matéria posta. Há, ainda, como se verá, lei estadual, também de iniciativa parlamentar, que já determina a mesma medida aos órgãos da administração pública estadual.

Assim, reiteram-se a seguir os argumentos do parecer jurídico no PL nº 052/18:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A lei que se pretende instituir se insere, efetivamente, na definição de interesse local, além de revestir-se do caráter de norma suplementar à legislação estadual. Isso porque o Projeto de Lei nº 052/2018, além de veicular matéria de relevância para o Município, não atrelada às competências privativas da União (CF, art. 22), estabelece regramento similar ao previsto na Lei Estadual nº 12.711, de 31 de maio de 2007, vinculando os prêmios ou créditos de milhagens oferecidos por companhias aéreas a objetivos de interesse público.

Quanto à matéria de fundo, não há qualquer violação ao conteúdo material da CF/88 e da CE/RS. A Constituição Federal, no artigo 37, prevê: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. A Constituição Estadual, por sua vez, dispõe no art. 19: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação...”

Impossível também deixar de recordar o artigo 23, I, da CF/88, que prevê a competência material comum de todos os entes da Federação – incluindo-se, portanto, os Municípios – de conservar e proteger o patrimônio público, objetivo principal deste projeto.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Verifica-se, no caso, que a vinculação de prêmios e créditos de milhagens oferecidos por companhias aéreas a objetivos de interesse público não viola a reserva de iniciativa prevista na Constituição Estadual, já que em momento algum se dispõe sobre cargos públicos, remuneração e servidores do Poder Executivo, bem como sobre organização da DPE ou sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos públicos.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que a Lei Estadual nº 12.711, de 31 de maio de 2007, que reservou a utilização de créditos de milhagens a missões oficiais, teve por proponente o Deputado Estadual Edson Brum, tendo sido reconhecida a constitucionalidade e a legalidade do projeto inclusive no que concerne à iniciativa, ponto de maior dificuldade na apreciação jurídica de proposições legislativas.

A proposição, na Assembleia Legislativa, recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça, conforme se verifica do documento anexo, sustentando-se que a medida é compatível com os princípios constitucionais da Administração Pública previstos na CF/88 e na CE/RS, em especial o da economicidade, uma vez que a utilização de créditos de milhagens em missões oficiais garante redução de custos de viagens, arcadas com dinheiro público. O Projeto de Lei nº 28/2007, aprovado com 46 votos favoráveis e nenhum contrário, foi sancionado pela então Governadora Yeda Crusius, o que reforça o argumento da ausência de qualquer vício de iniciativa.

Ocorre que, diferentemente da proposição em análise, a Lei Estadual nº 12.711, de 31 de maio de 2007, apenas instituiu a vinculação de prêmios ou créditos de milhagens a “missões oficiais”, sem especificar as hipóteses que, de fato, autorizam o uso da vantagem e sem detalhar requisitos, procedimentos ou condicionantes para tanto. Entende-se que esse detalhamento compõe aquilo que se denomina “reserva de administração”, cabendo a cada esfera respectiva (no caso do Município, Poder Executivo e Poder Legislativo) definir o que deve ser exigido para que o benefício seja concedido (cadastros, diagnósticos...)

Assim, tem-se que, por exigência do princípio constitucional da separação de poderes, previsto no artigo 2º da CF/88 e no artigo 5º da CE/RS, embora não haja impedimento constitucional para a vinculação dos prêmios ou créditos de milhagens a objetivos de interesse público, a definição das hipóteses, critérios, requisitos e procedimentos deve ser estabelecida por ato específico de cada poder, de acordo com as suas peculiaridades.

A respeito de tal matéria, acórdão do Tribunal de Contas da União apreciou minuciosamente a possibilidade de reversão de prêmios oriundos de milhagens em benefício do ente pagador. Discorreu que: a) o plano de milhagem funciona de forma semelhante a um carnê, sendo que as “parcelas” pagas (compras sucessivas de passagens) geram, ao final, a compra de um bilhete aéreo; b) os pontos/milhas pertencem ao titular da passagem, que se torna credor do serviço; c) o direito adquirido ao benefício, convertido em passagem aérea, consolida-se à medida do acúmulo de pontos; d) milhagem não é brinde: o bilhete aéreo é pago antecipadamente mediante o acúmulo de pontos, já presente, em cada compra, uma fração do valor financeiro da passagem adquirida com a milhagem acumulada. Finalmente, o TCU entendeu que somente a lei pode exigir a reversão dos pontos adquiridos em viagem oficial custeada com recursos públicos, podendo, no entanto, cada Poder independente regulamentar a lei, tornando-a melhor aplicável, em nome do princípio da economicidade.

Veja-se a ementa do acórdão:

REPRESENTAÇÃO. PASSAGENS CONTRATADAS PELO PODER PÚBLICO. UTILIZAÇÃO DE PRÊMIOS ORIUNDOS DE PONTOS E DE “MILHAGEM” OBTIDOS JUNTO A COMPANHIAS AÉREAS MEDIANTE PROGRAMAS DE FIDELIDADE. CONHECIMENTO. AUSÊNCIA DE NORMA LEGAL A DISCIPLINAR A MATÉRIA. EXISTÊNCIA DE PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO NO CONGRESSO NACIONAL. PRECEDENTES DO TCU. IMPROCEDÊNCIA. DETERMINAÇÃO À CGU. ARQUIVAMENTO.

Ante o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal), apenas em virtude de lei pode a Administração exigir que o servidor ceda-lhe pontos/milhagem – decorrentes de programas de fidelidade promovidos por companhias aéreas – adquiridos em viagem oficial custeada com recursos públicos.

Outrossim, a ausência de normativo legal impede que a Administração exija das companhias aéreas a reversão de pontos/milhagem a seu favor.

Considerando, ainda, que os pontos adquiridos com passagens aéreas não configuram brinde, estando incutidos nos valores dos bilhetes pré-adquiridos, cujo pagamento adveio com dinheiro público, configura-se como imoral a reserva desses pontos às pessoas físicas que utilizaram o serviço, porquanto o fizeram na função de servidores públicos, em nome da instituição a que pertencem. A reversão dos pontos de milhagens para a Administração Pública, no caso, é consentânea com os princípios mais basilares, como o da moralidade, da impessoalidade e da economicidade.

Sobre a implementação da medida em âmbito estadual, o TCE/RS já lançou notícia em seu site institucional informando que o banco de milhas teve por efeito uma economia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) aos cofres da instituição (fl. 17 do projeto de lei).

Para reafirmar a ausência de vício de iniciativa, cabe, por fim, esclarecer que o Supremo Tribunal Federal fez história ao julgar o Recurso Extraordinário com Agravo nº 878.911/RJ, reconhecendo repercussão geral no tema nº 917: “Competência para iniciativa de lei municipal que preveja a obrigatoriedade de instalação de câmeras de segurança em escolas públicas municipais e cercanias”. No acórdão, o STF registrou que as hipóteses de restrição previstas no artigo 61, § 1º, da CF – e, portanto, as correspondentes nas Constituições Estaduais – são taxativas, não admitindo interpretação extensiva por consistirem em normas de exceção ao poder de iniciativa: 

O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento no sentido de que as hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão taxativamente previstas no art. 61 da Constituição, que trata da reserva de iniciativa de lei do Chefe do Poder Executivo. Não se permite, assim, interpretação ampliativa do citado dispositivo constitucional, para abarcar matérias além daquelas relativas ao funcionamento e estruturação da Administração Pública, mais especificamente, a servidores e órgãos do Poder Executivo. Nesse sentido, cito o julgamento da ADI 2.672, Rel. Min. Ellen Gracie, Redator p/ acórdão Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJ 10.11.2006; da ADI 2.072, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 2.3.2015; e da ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, DJe 215.8.2008.

[...]

Assim, somente nas hipóteses previstas no art. 61, § 1º, da Constituição, ou seja, nos projetos de lei cujas matérias sejam de iniciativa reservada ao Poder Executivo, é que o Poder Legislativo não poderá criar despesa. [...] No caso em exame, a lei municipal que prevê a obrigatoriedade de instalação de câmeras de segurança em escolas públicas municipais e cercanias não cria ou altera a estrutura ou a atribuição de órgãos da Administração Pública local nem trata do regime jurídico de servidores públicos, motivo pelo qual não vislumbro nenhum vício de inconstitucionalidade formal na legislação impugnada.

O entendimento do STF, órgão responsável pela guarda da Constituição (artigo 102, caput, CF), sem dúvidas ecoa por todos os tribunais brasileiros, especialmente porque manifestado em julgamento de recurso extraordinário, com o reconhecimento da repercussão geral (existência de questão relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassa os interesses subjetivos do processo – artigo 1.035, § 1º, NCPC).

Portanto, considerando a fundamentação exposta e, também, que o texto aprovado apenas incorporou os prêmios e créditos de milhagens ao erário público, quando passagens sejam adquiridas por recursos públicos, em nome da moralidade, impessoalidade e economicidade, garantindo-se, por outro lado, a independência do Executivo para regulamentar condições, hipóteses, requisitos e procedimentos para a utilização dos créditos, conclui-se que a matéria não adentra em campo sujeito à estrita reserva de administração, por não dispor sobre servidores e sua remuneração, serviços públicos e órgãos públicos.

Conclusão:

Diante do exposto, respeitada a prerrogativa do Prefeito para vetar projetos de lei, a Procuradoria opina pela constitucionalidade do texto aprovado no Projeto de Lei nº 052/2018, não se descartando, porém, a possibilidade de que, em eventual ação direta de inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça venha a reconhecer inconformidade com a Constituição Estadual, por adoção de entendimento diverso.

Guaíba, 10 de agosto de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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