Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 106/2018
PROPONENTE : Ver.ª Fernanda Garcia
     
PARECER : Nº 229/2018
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Cria o banco de materiais ortopédicos no Município de Guaíba"

1. Relatório:

 A Vereadora Fernanda Garcia apresentou o Projeto de Lei nº 106/2018 à Câmara Municipal, objetivando criar o banco de materiais ortopédicos no Município de Guaíba. Encaminhado à Presidência para análise quanto à admissibilidade com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

O banco de materiais ortopédicos que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 23, II, CF), não atrelada às competências legislativas privativas da União (CF, artigo 22), o Projeto de Lei nº 106/2018 vai ao encontro do direito fundamental à saúde, que garante a dignidade da pessoa humana.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 106/2018 é promover a doação de materiais ortopédicos às pessoas que não possuem condições financeiras para adquiri-los. A medida pretendida, quanto à matéria, vem ao encontro de todo o arcabouço jurídico relativo à matéria.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 106/2018, embora de propósitos louváveis, afronta o princípio constitucional da separação entre os poderes, insculpido no artigo 2º da Constituição Federal de 1988:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

 

Caracteriza a proposição, ademais, vício de iniciativa, visto que pretende criar atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, além de adentrar em matéria eminentemente administrativa daquele órgão, sendo vedada a iniciativa parlamentar no tocante à organização administrativa do Poder Executivo. As hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que limitam o poder de iniciativa dos vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

  • 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

  1. a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
  2. b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
  3. c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
  4. d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
  5. e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
  6. f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme prevê o artigo 125, § 2º, da CF e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

  1. a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;
  2. b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;
  3. c) organização da Defensoria Pública do Estado;
  4. d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Especificamente, o Projeto de Lei nº 106/2018 tem como objetivo fundamental a criação de uma nova atribuição permanente para a Secretaria de Saúde, órgão da Administração Pública Municipal, que consiste no recebimento de doações de materiais ortopédicos, usados ou novos, seu armazenamento e posterior destinação ou empréstimo a quem necessite, além de programar a instituição de um cadastro no âmbito da Secretaria de Saúde do município. Nesses termos, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que criem ou estruturem órgãos da Administração Pública, ou que lhe atribuam obrigações até então inexistentes, compete apenas ao Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa.

Tem assentado entendimento nesse sentido o TJRS:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N.º 3.032/2010 DO MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS. CRIAÇÃO DE BANCO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, MÓVEIS E UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra “a” da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal – criação de banco de materiais de construção, móveis, utensílios domésticos no âmbito do Município de Gravataí - e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº 3.032/2010, do Município de Gravataí/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 70040358459, Órgão Especial, Rel. José Genaro Baroni Borges, 23 de maio de 2011).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N.º 5.021/10, DE MOGI MIRIM, DE INICIATIVA LEGISLATIVA, QUE INSTITUIU O BANCO DE REMÉDIO, COM O OBJETIVO DE FORMAR ESTOQUE ORIUNDO DE DOAÇÕES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS, DEVENDO FUNCIONAR EM LOCAL PRÓPRIO A SER DESIGNADO PELO PODER EXECUTIVO. CRIAÇÃO DE OBRIGAÇÕES PARA A ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. INGERÊNCIA INDEVIDA. PROPOSTA QUE DEVERIA PARTIR DO EXECUTIVO LOCAL. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. OFENSA DIRETA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, BEM COMO AOS ARTIGOS 5O E 47, II E XIV, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. NORMA, ADEMAIS, QUE NÃO INDICA A FONTE DE RECURSOS (TJ-SP - ADI: 02422262220128260000 SP 0242226-22.2012.8.26.0000, RELATOR: LUIS SOARES DE MELLO, DATA DE JULGAMENTO: 10/04/2013, ÓRGÃO ESPECIAL, DATA DE PUBLICAÇÃO: 18/04/2013).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 4.273/2015, DO MUNICÍPIO DE CANGUÇU, QUE INSTITUI O BANCO DE REGISTRO DE DOADORES DE SANGUE. CRIAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. MATÉRIA SOBRE A QUAL COMPETE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LEGISLAR PRIVATIVAMENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE PROCLAMADA. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, lei municipal proposta pelo Poder Legislativo que, ao instituir banco de registro de doadores de sangue, cria atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, porquanto são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 60, inc. II, alínea "d", da Constituição Estadual). Por conseguinte, também resta caracterizada ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes no âmbito municipal, consagrado nos arts. 8º, caput, e 10 da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068415397, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 17/10/2016).

Destarte, ainda que louvável a proposição sob o ponto de vista material, o Projeto de Lei nº 106/2018 incorre em vício de iniciativa, por dispor sobre as atribuições de órgão público municipal, matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, e “e”, da CF e do artigo 60, II, “d”, da CE/RS, apresentando inconstitucionalidade manifesta.

Quanto à técnica legislativa, a proposição merece correção na forma de apresentação dos artigos (Art. 1º. e não Art. 1-), em consonância com o que dita a Lei Complementar N.º 95 de 26 de fevereiro de 1998, que “Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona” com suas alterações posteriores (LC nº 107/2001).

Conclusão:

Diante dos fundamentos expostos, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de tratar-se de matéria manifestamente inconstitucional em afronta aos arts. 2º, 61, § 1º da Constituição Federal e aos arts. 19 e 60 da Constituição Estadual, bem como por vício de iniciativa frente ao art. 119, II da Lei Orgânica Municipal, cabendo recurso ao Plenário.

É o parecer.

Guaíba, 02 de julho de 2018.

FERNANDO HENRIQUE ESCOBAR BINS

Procurador Geral da Câmara de Guaíba

OAB/RS nº 107.136



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