Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 086/2018
PROPONENTE : Ver. Miguel Crizel
     
PARECER : Nº 179/2018
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a criação do Projeto Empresa Parceira da Saúde de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Miguel Crizel apresentou o Projeto de Lei nº 086/18 à Câmara Municipal, objetivando criar o Projeto Empresa Parceira da Saúde de Guaíba. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do RI.

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

O projeto que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque, além de veicular matéria de competência material do Município (artigo 23, II, CF/88), não atrelada às competências legislativas privativas da União (CF/88, artigo 22), o Projeto de Lei nº 086/2018 estabelece meios de estímulo à iniciativa privada para a melhoria da estrutura do Pronto Atendimento de Guaíba e dos postos de saúde da rede pública municipal.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do Projeto de Lei nº 086/18 é estabelecer meios de incentivo para a melhoria da estrutura da rede pública de saúde, mediante a oferta de doações, pela iniciativa privada, de materiais hospitalares, medicamentos, bem como obras de manutenção, conservação, reforma e ampliação das unidades da saúde municipal, tendo como contrapartida os benefícios previstos no parágrafo único do art. 4º. A medida pretendida, quanto à matéria, vem ao encontro dos comandos constitucionais.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 086/2018, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. As hipóteses de iniciativa privativa do Poder Executivo, que limitam o poder de iniciativa dos Vereadores, estão expressamente previstas na Constituição Federal, aplicadas por simetria aos Estados e Municípios. Dispõe o artigo 61, § 1º, da CF/88:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;

II - disponham sobre:

a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;

c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observadoo disposto no art. 84, VI;  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Para os fins do direito municipal, mais relevante ainda é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei, desde que haja previsão do programa na lei orçamentária anual, na forma do artigo 154, I, da CE/RS e do artigo 167, I, da CF/88. Inclusive, como já referiu o IGAM em outras oportunidades, o Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que “Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos.” (ARE 878.911/RJ, Relator: Min. Gilmar Mendes, publicado em 11/10/2016).

Sucede-se que, muito além do aspecto financeiro, o Projeto de Lei nº 086/2018 cria atribuições aos órgãos públicos no sentido de receberem doações de materiais hospitalares, medicamentos e outros produtos (art. 1º, parágrafo único, e art. 3º, parágrafo único), depositando-os em local a ser definido, bem como de analisar a aprovar requerimentos de parceria (art. 4º), com a previsão de contrapartidas a serem oferecidas pelo Poder Executivo que interferem notadamente na sua organização administrativa, como “inserção gratuita do logotipo da empresa nos portais eletrônicos da Prefeitura” (art. 4º, parágrafo único, inc. II), “inserções gratuitas em periódicos eventualmente publicados pela Secretaria Municipal de Saúde ou pela Secretaria Municipal de Administração” (art. 4º, parágrafo único, inc. III) e “publicidade em eventos realizados pela Prefeitura Municipal ou Secretaria de Saúde, nos quais o parceiro esteja envolvido pela área de atuação” (art. 4º, parágrafo único, inc. IV).

Tais medidas, embora sejam muito respeitáveis, quando veiculadas em proposição de iniciativa parlamentar, violam o sistema constitucional de iniciativas para a deflagração do processo legislativo e o princípio da separação dos poderes, visto que envolvem inúmeros atos de alçada exclusiva do Executivo, enquanto gestor dos serviços públicos. Aliás, no âmbito municipal, os artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica de Guaíba fazem reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias, à semelhança do art. 60 da CE/RS:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Ainda, importante referir que proposições similares já foram apreciadas por esta Procuradoria Jurídica, sendo todas consideradas formalmente inconstitucionais por vício de iniciativa. A exemplo, podem ser citados o Projeto de Lei nº 078/2017, de autoria dos Vereadores Bento do Bem, Claudinha Jardim e Florindo Motorista, que cria o Banco de Materiais Ortopédicos, Próteses Oculares e Auditivas; o Projeto de Lei nº 038/2018, de autoria do Vereador Juliano Ferreira, que cria o Banco Municipal de Materiais de Construção; e o Projeto de Lei nº 063/2018, de autoria do Vereador Ale Alves, que autoriza a instituição do projeto “Empresa Amiga dos Animais e Cidadãos Conscientes.”

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposição não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos dessa natureza compete apenas ao Chefe do Poder Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa e pelos serviços públicos.

Nesse sentido, a jurisprudência dos tribunais:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MUNICÍPIO DE PELOTAS. LEI MUNICIPAL DETERMINANDO A OBRIGAÇÃO A CRIAÇÃO DE SERVIÇO DE RECOLHIMENTO GRATUITO DE MATERIAIS EM DESUSO. VÍCIO DE INICIATIVA. INTERFERÊNCIA NA ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ARTIGOS 8º, 60, II, D, 82, III E VII, E 154, I E II, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. CRIAÇÃO DE DESPESAS SEM PREVISÃO DE DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA SUFICIENTE. INCONSTITUCIONALIDADE CARACTERIZADA. Reconhecida a inconstitucionalidade de Lei Municipal originada da Câmara Municipal de Vereadores determinando a criação de serviço de recolhimento gratuito de materiais em desuso (móveis, eletrodomésticos, etc.), uma vez que é de competência privativa do Prefeito Municipal a criação de leis que disponham sobre a estruturação da Administração Pública e as atribuições de seus órgãos, nos termos dos artigos 60, II, d e 82, III e VII, da Constituição Estadual, os quais reproduzem normas contidas da Constituição Federal. Ofensa também caracterizada em relação ao artigo 154, I e II, da Constituição Estadual, porquanto a implementação do disposto na norma impugnada implica em evidente aumento de gasto por parte da Administração sem que, contudo, haja a respectiva previsão orçamentária. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70062437777, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena Medeiros... Nogueira, Julgado em 06/04/2015).

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 5.021/10, de Mogi Mirim, de iniciativa legislativa, que instituiu o banco de remédio, com o objetivo de formar estoque oriundo de doações de pessoas físicas e jurídicas, devendo funcionar em local próprio a ser designado pelo Poder Executivo. Criação de obrigações para a Administração Municipal. Ingerência indevida. Proposta que deveria partir do Executivo local. Vício de iniciativa configurado. Ofensa direta ao princípio da Separação dos Poderes, bem como aos artigos 5º e 47, II e XIV, ambos da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Norma, ademais, que não indica a fonte de recursos (TJ-SP - ADI: 02422262220128260000 SP 0242226-22.2012.8.26.0000, Relator: Luis Soares de Mello, Data de Julgamento: 10/04/2013, Órgão Especial, Data de Publicação: 18/04/2013).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 4.273/2015, DO MUNICÍPIO DE CANGUÇU, QUE INSTITUI O BANCO DE REGISTRO DE DOADORES DE SANGUE. CRIAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES À SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE. VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO. MATÉRIA SOBRE A QUAL COMPETE AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LEGISLAR PRIVATIVAMENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. INCONSTITUCIONALIDADE PROCLAMADA. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, lei municipal proposta pelo Poder Legislativo que, ao instituir banco de registro de doadores de sangue, cria atribuições à Secretaria Municipal de Saúde, porquanto são de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública (art. 60, inc. II, alínea "d", da Constituição Estadual). Por conseguinte, também resta caracterizada ofensa ao princípio da separação e independência dos Poderes no âmbito municipal, consagrado nos arts. 8º, caput, e 10 da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70068415397, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 17/10/2016).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N.º 3.032/2010 DO MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS. CRIAÇÃO DE BANCO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, MÓVEIS E UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra "a" da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal - criação de banco de materiais de construção, móveis, utensílios domésticos no âmbito do Município de Gravataí - e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº3.032/2010, do Município de Gravataí/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70040358459, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Julgado em 23/05/2011).

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base nos artigos 2º e 61, § 1º, II, “b”, da CF/88, no artigo 60, II, “d”, da CE/RS e nos artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Sugere-se, por outro lado, remessa de indicação ao Executivo para a implementação da medida.

Guaíba, 22 de maio de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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