PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a fiscalização direta, pelo usuário, do processo de manipulação de alimento em bares, confeitarias, supermercados, padarias, lanchonetes, churrascarias, restaurantes, pizzaria e similares, por visualização através de aberturas transparentes ou câmeras de vídeo ou acesso irrestrito e facilitado e dá outras providências" 1. Relatório:O Vereador Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 064/2018 à Câmara Municipal, objetivando dispor sobre a fiscalização direta, pelo usuário, do processo de manipulação de alimentos em bares, confeitarias, supermercados, padarias, lanchonetes, churrascarias, restaurantes, pizzarias e similares, por visualização através de aberturas transparentes ou câmeras de vídeo ou acesso irrestrito e facilitado. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do RI. 2. Parecer:De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros. A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único). A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao DF; as de interesse local, por fim, aos Municípios. No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios. Em relação à matéria de produção e consumo, a CF/88, de fato, estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (artigo 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (artigo 24, § 2º). Ocorre que o artigo 30, inciso I, da CF/88 é claro ao garantir aos Municípios a competência exclusiva para legislar sobre assuntos de interesse local. A interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências legislativas é a que garante ampla outorga de poderes aos Municípios, que só não podem criar normas que esbarrem na competência privativa do artigo 22 da CF, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base no interesse local sobre matérias de competência concorrente. Tanto é que, caso não se admitisse aos Municípios a competência para legislar sobre matérias versadas no artigo 24 da CF, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários (“proteção e defesa da saúde – art. 24, XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – art. 24, VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – art. 24, I). A propósito, cabe apresentar a lição doutrinária de Paulo Bessa Antunes quanto à competência dos Municípios para legislar sobre proteção e defesa do meio ambiente, com base no interesse local, o que é aplicável em relação à competência legislativa para produção e consumo por também constar no artigo 24 da CF/88:
Considerando, portanto, a competência do Município para legislar sobre direito ambiental – que, tal como a matéria de produção e consumo, consta no artigo 24 da CF –, vislumbra-se também a competência para legislar sobre a presente matéria, desde que no estrito âmbito do interesse local. Nesse sentido, a lição da jurisprudência:
Portanto, em que pese a matéria de produção e consumo esteja presente no artigo 24 da CF/88 como uma competência concorrente da União e dos Estados, não há dúvidas de que os Municípios, no estrito interesse local, podem legislar sobre tal temática, atentando para não extrapolar o âmbito local e para não entrar em conflito com normas constitucionais ou infraconstitucionais. No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:
Verifica-se, no caso, que a previsão do artigo 1º do Projeto de Lei nº 064/2018 em momento algum viola o sistema constitucional de reserva de iniciativas do processo legislativo, visto que não dispõe sobre cargos públicos, remuneração e servidores do Poder Executivo, bem como sobre organização da DPE ou sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos públicos. No entanto, em relação ao trecho “caso o não cumprimento o local, estabelecimento será interditado para devidas modificações estabelecido na lei”, além de não estar devidamente claro sob o ponto de vista da técnica legislativa, atribui nova função aos órgãos públicos municipais no sentido de interditar o estabelecimento que não esteja cumprindo as obrigações constantes na lei. O mesmo ocorre em relação ao disposto no art. 3º, visto ter sido estabelecida uma condicionante para a outorga de licença de funcionamento, o que competiria apenas ao Chefe do Executivo dispor, nos termos dos artigos 52, VI, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal. Veja-se na jurisprudência alguns precedentes que confirmam essa análise:
Sob o aspecto material da proposição, tem-se que andou bem o Projeto de Lei nº 064/2018 ao estipular alternativas para que o empresário garanta a fiscalização direta, pelo usuário, do processo de manipulação de alimentos. O comerciante estará de acordo com a lei ao adotar pelo menos alguma das seguintes medidas: a) assegurar que a cozinha esteja perfeitamente à mostra aos usuários; b) instalar câmeras de vídeo para acompanhamento, pelos usuários, da produção de alimentos para consumo; c) garantir acesso irrestrito e facilitado ao ambiente onde os alimentos são manipulados. Essa alternatividade reduz o grau de intervenção no livre exercício das atividades privadas, permitindo, por outro lado, maior segurança e informação aos consumidores sobre o processo de produção de alimentos. Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram, em seu núcleo, a prerrogativa de que todos podem exercer atividades empresariais como meio de sobrevivência, desde que atendam às condições estabelecidas em lei. Trata-se, portanto, de uma garantia ligada à liberdade, direito fundamental de primeira dimensão que obriga o Estado a adotar uma posição de inércia em relação aos cidadãos, que se autodeterminam conforme a própria vontade. Como todo e qualquer princípio constitucional, não há absolutismos. Se, por um lado, o livre exercício do trabalho não admite interferências estatais graves, por outro a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, de acordo com os ditames da justiça social, observado, entre outros, o princípio de defesa do consumidor (artigo 170, inc. V, CF/88). Sob o ponto de vista da proporcionalidade, tenho que a medida proposta não causa uma grave interferência no exercício da atividade privada a ponto de torná-la inviável. Como referido anteriormente, uma das medidas possíveis é a garantia de acesso irrestrito e facilitado ao ambiente onde os alimentos são manipulados (art. 1º, III), providência que não possui qualquer custo financeiro ao empresário, sendo plenamente praticável. Assim, em geral, o Projeto de Lei nº 064/2018 é juridicamente viável, devendo ser ajustados apenas os arts. 2º e 3º, por disporem sobre atribuições típicas dos órgãos públicos do Poder Executivo, o que, nos termos dos precedentes citados, caracteriza vício de iniciativa do processo legislativo. Sugere-se a seguinte proposta de substitutivo, para adequar a proposição aos dispositivos constitucionais:
* Atentar para o art. 1º, caput, do projeto originário, que refere em dois momentos o termo “restaurantes”. Conclusão:Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de a Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, para ajuste conforme recomendado, uma vez que, do contrário, incorrem os artigos 2º e 3º em vício de iniciativa, à luz do artigo 60, II, “d”, da CE/RS e dos artigos 52, VI, e 119, II, da LOM. Guaíba, 08 de maio de 2018. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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