Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 054/2018
PROPONENTE : Ver. Juliano Ferreira
     
PARECER : Nº 114/2018
REQUERENTE : #REQUERENTE#

"Dispõe sobre a obrigatoriedade de restaurantes, bares, lanchonetes e estabelecimentos congêneres em oferecer alimentação adequada para pessoas com diabetes e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Juliano Ferreira apresentou o Projeto de Lei nº 054/2018 à Câmara Municipal, objetivando tornar obrigatório aos restaurantes, bares, lanchonetes e estabelecimentos congêneres que incluam, em seus cardápios de refeições, sobremesas e bebidas, uma dieta alimentar planejada e elaborada por nutricionistas, compatível com as necessidades das pessoas com diabetes. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico.

2. Parecer:

De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, estando prevista, no inciso I, a competência para legislar sobre assuntos de interesse local. A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, pois a proposta pretende obrigar estabelecimentos locais a disponibilizarem cardápio com opções compatíveis com as necessidades alimentares de portadores de diabetes, o que se encontra no estrito âmbito do Município de Guaíba, sem afetar qualquer das demais competências reservadas aos outros entes federados.

No que diz respeito à iniciativa para deflagrar o processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, visto que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Refere o artigo 60 da CE/RS:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, o artigo 119 da Lei Orgânica, à semelhança do artigo 60 da Constituição Estadual, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre certas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Verifica-se, no caso, que não há qualquer limitação constitucional à propositura de projeto por Vereador sobre a matéria tratada, já que, com base nos fundamentos acima expostos, não se constata qualquer hipótese de iniciativa privativa e/ou exclusiva.

Ocorre que, sob o ponto de vista material, o Projeto de Lei nº 054/18 incorre em inconstitucionalidade, por representar desproporcional interferência na liberdade econômica. Como se percebe da sua leitura, a proposição objetiva obrigar todos os restaurantes, bares, lanchonetes e estabelecimentos congêneres a incluírem, em seus cardápios de refeições, sobremesas e bebidas, uma dieta alimentar planejada e elaborada por nutricionistas, compatível com as necessidades das pessoas com diabetes. Tal medida, além de interferir drasticamente na projeção de custos e lucros – fator primordial de qualquer organização empresarial –, afronta o fundamento constitucional da livre iniciativa, por obrigar todas as empresas onde se trabalhe com alimentação a oferecerem um cardápio específico para determinado grupo, arcando com todos os custos disso decorrentes, inclusive da contratação de nutricionista para elaborar a dieta a ser obrigatoriamente posta à disposição.

Um exemplo visível de como a proposta parece ser desproporcional: considerando que a proposição obriga todos os restaurantes, bares, lanchonetes e congêneres em Guaíba a oferecerem opções de alimentação para pessoas com diabetes, imagine-se um pequeno estabelecimento, recém aberto, mantido por uma família de baixa renda, que comercialize lanches de custo reduzido. Após a vigência da lei que se pretende estabelecer, essa empresa estará obrigada a contratar nutricionista para elaborar opções próprias para pessoas com diabetes (o que, na verdade, já escapa ao tipo de produto vendido) e, não bastasse, a arcar com todos os custos dessa obrigação legal. Tal situação, muito certamente, inviabilizará a subsistência da empresa, coagindo-a a encerrar as suas atividades. Portanto, verifica-se que, embora aparentemente admirável a proposta, tem ela aptidão para gerar consequências danosas ao interesse local.

Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram, em seu núcleo, a prerrogativa de que todos podem exercer atividades empresariais como meio de sobrevivência, desde que atendam às condições estabelecidas em lei. Trata-se, portanto, de uma garantia ligada à liberdade, direito fundamental de primeira dimensão que obriga o Estado a adotar uma posição de inércia em relação aos cidadãos, que se autodeterminam conforme a própria vontade. Como máxima desse princípio, tem-se o mandamento de que ninguém pode ser obrigado a comercializar aquilo que não deseja. Isto é, não cabe ao Estado definir aquilo que o empresário deve comercializar, cabendo exclusivamente a este a decisão.

Desse modo, tem-se que, sob o ponto de vista da proporcionalidade, a medida causa uma grave interferência no exercício da atividade privada a ponto de torná-la inviável.

O princípio da proporcionalidade se divide em três parâmetros a serem observados pelo intérprete: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação se faz presente quando a medida escolhida é idônea para atingir o objetivo; a necessidade, por sua vez, exige que a medida adotada seja indispensável para alcançar a finalidade, não sendo substituível por outras menos gravosas; a proporcionalidade em sentido estrito, por fim, é a análise do equilíbrio entre os danos da restrição de um direito fundamental e as vantagens da preponderância de outro direito fundamental.

No caso em análise, a verificação da proporcionalidade da medida pretendida com o Projeto de Lei nº 054/2018 impõe os seguintes questionamentos: a criação de uma lei tornando obrigatório a todos os estabelecimentos que trabalhem com refeições e lanches a oferecerem opções próprias para diabéticos é medida adequada para garantir o direito à alimentação adequada dos portadores da doença? A obrigação de disponibilizar tais opções é medida necessária para garantir tal direito, não havendo medida menos restritiva capaz de alcançar esse objetivo, com a conciliação dos interesses? Os benefícios a serem obtidos com a medida justificam os meios empregados?

Creio que a medida não seja estritamente necessária para garantir o acesso dos diabéticos à alimentação adequada. Primeiro porque não cabe à iniciativa privada o dever de garantir, sempre à disposição dos clientes, um cardápio com opções de baixo teor calórico e índice glicêmico, sendo tal medida de única e exclusiva responsabilidade do próprio portador da doença. Em segundo lugar, a própria livre iniciativa, por si só, pode colocar à disposição desse grupo opções de alimentação saudável, já havendo restaurantes com essa proposta, razão pela qual não se vê necessidade de obrigar todas as empresas a criarem cardápios com tais produtos. Por fim, a imposição de uma lei nesse sentido tem total propensão a não possuir efetividade, uma vez que, como já se disse, não pode o Estado definir aquilo que o empresário deve ou não comercializar, cabendo exclusivamente a este a decisão.

Ainda, vale destacar que a aprovação de projeto de lei nesses termos pode acarretar a elaboração de novas propostas para obrigar restaurantes, bares, lanchonetes e congêneres a oferecer cardápio próprio e adequado para, entre outros, cardíacos, celíacos, alérgicos, obesos, gestantes e idosos, tornando injustificável eventual parecer jurídico em sentido contrário à primeira proposição e, acima de tudo, sobrecarregando o comércio local.

Assim, embora proposição similar já tenha sido apresentada na Câmara Municipal de Porto Alegre, certo é que tal medida, quando analisada sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade, é incompatível com outros princípios constitucionais (livre atividade econômica e livre concorrência – artigos 1º, IV, 170, IV, e 5º, XIII,CF/88), sendo materialmente inconstitucional.

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de inconstitucionalidade material, caracterizada com base nos artigos 1º, inc. IV, 170, inc. IV, e 5º, inc. XIII, da CF/88.

Guaíba, 17 de abril de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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