PARECER JURÍDICO |
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"Concede o direito ao cadeirante o embarque e desembarque em qualquer local dentro da rota que seja seguro ao trânsito e ao cadeirante no transporte público do município" 1. Relatório:A Vereadora Fernanda Garcia apresentou o Projeto de Lei nº 044/2018 à Câmara Municipal, objetivando garantir, no Município de Guaíba, o direito a que cadeirantes embarquem e desembarquem em qualquer local seguro dentro da rota dos veículos de transporte coletivo público municipal. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. 2. Parecer:De fato, a norma insculpida no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba prevê que cabe ao Presidente do Legislativo a prerrogativa de devolver ao autor as proposições manifestadamente inconstitucionais (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou ainda aquelas de caráter pessoal (art. 105, III). O mesmo controle já é exercido no âmbito da Câmara dos Deputados, com base em seu Regimento Interno (art. 137, § 1º), e no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI), e foi replicado em diversos outros regimentos internos de outros parlamentos brasileiros. A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como um controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, com natureza preventiva e interna, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único). O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, administração e governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A norma que se pretende editar no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local e na competência municipal, visto que o Projeto de Lei nº 044/2018 objetiva estabelecer o direito a que cadeirantes embarquem e desembarquem em locais diferentes dos pré-estabelecidos na concessão ou permissão de serviço público de transporte coletivo, por razões de segurança, conforto e acessibilidade. Tais medidas se inserem na competência municipal e estão alinhadas aos objetivos de proteção previstos na Constituição Estadual Gaúcha. Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. Isso porque o texto constitucional determina a obrigação do Estado, em sentido amplo, de oferecer condições de acessibilidade às pessoas com deficiência, visando eliminar e/ou reduzir as barreiras que impossibilitam o pleno exercício dos seus direitos. O Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – norma que, aliás, possui o status de emenda constitucional –, prevê, no artigo 4º, 1, que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência”, comprometendo-se a: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.” No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelece, no artigo 2º: “Considera-se pessoa com deficiência aquele que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Prevê, ainda, o art. 8º do Estatuto, a respeito do direito à acessibilidade:
Assim, embora haja, na legislação federal, o dever genérico estatal de garantir a acessibilidade às pessoas com deficiência, a intenção da legisladora, nesse caso, é instituir verdadeira obrigação às empresas concessionárias e permissionárias de transporte coletivo, que deverão garantir o direito a que cadeirantes embarquem e desembarquem em pontos diferentes dos pré-estabelecidos no contrato de delegação do serviço, de modo a implementar concretamente a garantia da acessibilidade. Ocorre que o Projeto de Lei nº 044/2018, embora louvável o seu objeto, contém vício de iniciativa. A proposição esbarra no disposto no art. 61, § 1º, da Constituição Federal, que estabelece a iniciativa privativa para a deflagração do processo legislativo, fixando as disciplinas próprias do Presidente da República, aplicáveis por simetria aos demais entes federados, entre eles o Município de Guaíba:
O conteúdo normativo do Projeto de Lei nº 044/2018, do Poder Legislativo, invade a iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no aludido art. 61, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, ao regulamentar serviço público que é de responsabilidade e atribuição do Executivo. O serviço público de transporte coletivo conta necessariamente com certa regulamentação para a sua execução e eficiência, podendo ser realizado diretamente ou mediante delegação a terceiros, neste caso precedida da indispensável licitação. No caso de Guaíba, o serviço é, de fato, delegado a empresas selecionadas por procedimento licitatório, perfazendo-se a relação por contrato administrativo, com cláusulas fixas sobre a forma de prestação do serviço, que até podem ser alteradas unilateralmente, mas apenas por iniciativa do próprio contratante (Poder Executivo). Diante disso, a alteração das regras contratuais sobre a prestação do serviço não cabe ao Poder Legislativo, mas apenas ao Executivo, enquanto esfera de poder responsável pelo transporte público municipal. Lembre-se, também, que a medida é uma daquelas que tem aptidão para interferir no contrato administrativo, uma vez que a mudança dos momentos de parada pelo exercício da prerrogativa conferida às pessoas com deficiência pode acarretar alteração do tempo médio calculado para os percursos, o que deve estar previsto no ato de delegação do serviço ou, caso não previsto, ser implementado por ordem e iniciativa exclusiva do Poder Executivo, sendo o Prefeito a única autoridade legitimada para tanto. Não se pode esquecer, ainda, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:
A Lei Municipal nº 2.931/12 dispõe sobre a reestruturação do transporte coletivo de passageiros em Guaíba, determinando no art. 7º: “Compete ao poder concedente o gerenciamento, o planejamento operacional e a fiscalização do sistema de transporte coletivo de passageiros no Município de Guaíba, através da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana.” O art. 8º, por sua vez, expressa que caberá ao poder concedente (Executivo) dispor sobre os aspectos dos serviços de transporte coletivo urbano, entre eles a “fixação e alteração de itinerários, horários, terminais, fusão de linhas, implantação de ramais, alterações, encurtamento, extinção, prolongamento e pontos de parada de cada linha” (inciso II), bem como a fixação de “padrões de segurança, manutenção e acessibilidade” (inciso III). A mesma lei municipal ainda estabelece, no seu art. 21, que as empresas permissionárias ou concessionárias do serviço de transporte público estão obrigadas a “executar os serviços com rigoroso cumprimento de horário, frequência, frota, tarifa, itinerário, pontos de parada e terminais.” (inciso VII). Também é estabelecido, nesse diploma legal, um código disciplinar de conduta a ser cumprido pelas empresas delegatárias do serviço de transporte coletivo, estando prevista como infração do GRUPO A, sujeita a multa de R$ 51,28, a parada do ônibus em pontos não autorizados (art. 50, “A-03”). A infração de parar o veículo sobre a via de tráfego, não utilizando os refúgios de parada de ônibus (art. 51, “B-03”), está classificada no GRUPO B, sendo punida com multa de R$ 128,21. Veja-se, desse modo, que a estrita regulamentação do serviço de transporte público coletivo no Município de Guaíba, implementada pelo Poder Executivo através da Lei Municipal nº 2.931/12, é incompatível com os termos da proposta, uma vez que os embarques e desembarques em pontos diferentes dos definidos caracterizaria infração disciplinar punível com a penalidade de multa. Assim, considerando ser exclusiva do Poder Executivo a iniciativa para definir a forma de prestação do serviço de transporte coletivo, que deve considerar os termos da Lei Municipal nº 2.931/12, o Projeto de Lei nº 044/18 sofre de inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, sendo juridicamente inviável. Sugere-se a remessa de indicação ao Executivo, nos termos regimentais, para a alteração da Lei Municipal nº 2.931/12, de modo a estabelecer no regramento o direito proposto no Projeto de Lei nº 044/18, diante do seu inquestionável mérito. Conclusão:Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88, no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal e na Lei Municipal nº 2.931/12. Guaíba, 05 de abril de 2018. GUSTAVO DOBLER Procurador OAB/RS nº 110.114B O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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