Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 018/2018
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 041/2018
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Dispõe sobre a criação do cartão de vacinação eletrônico no município de Guaíba e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 018/2018 à Câmara Municipal, objetivando instituir, no Município de Guaíba, o cartão eletrônico de vacinação. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

O cartão eletrônico de vacinação que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 018/2018 objetiva estabelecer mecanismo mais moderno e seguro de controle da saúde da população local, restringindo-se ao estrito âmbito local.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. A Constituição Federal, no artigo 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O artigo 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Percebe-se, pois, que o Projeto de Lei nº 018/18 está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do artigo 5º da CF.

Ocorre que a proposta, embora louvável no seu objeto, contém vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Vale destacar que o mero fato de gerar novas despesas ao Poder Executivo não obstaculiza a tramitação de projetos de lei, desde que haja previsão do programa na lei orçamentária anual, na forma do artigo 154, I, da CE/RS e do artigo 167, I, da CF/88. Inclusive, como bem já sustentou o IGAM, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu o entendimento de que “Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos.” (ARE nº 878.911/RJ, Relator: Min. Gilmar Mendes, publicado em 11/10/2016).

Sucede-se que, muito além de apenas criar novas despesas ao Executivo, o Projeto de Lei nº 018/2018 objetiva a instituição de novas tarefas específicas para a Secretaria de Saúde, que consistem na implantação de um cartão eletrônico de vacinação aos cidadãos do Município de Guaíba, tendo sido previstas inúmeras atribuições ao referido órgão da Administração Pública, como se percebe a seguir:

Art. 2º Os dados referentes à vacinação deverão ser salvos eletronicamente em um banco de dados, por qualquer Unidade de Saúde.

[...]

II – As informações deverão ser inseridas tanto pelo sistema público quanto pelo privado de vacinação, sendo disponibilizadas de forma eletrônica e via internet.

Art. 3º É de responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde a criação de infraestrutura necessária para informatização do sistema de vacinação.

I – Cabe à Secretaria Municipal de Saúde a criação do banco de dados para o armazenamento das informações sobre a vacinação;

II – Cabe à Secretaria Municipal de Saúde o treinamento para os profissionais que possam manter o banco de dados atualizado;

III – Cabe à Secretaria Municipal de Saúde alimentar o banco de dados com informações referentes à vacinação de todas as crianças ou cidadãos que vierem a ser vacinados a partir da data de publicação desta Lei.

Veja-se que em praticamente toda a proposta são feitas referências a obrigações que a Secretaria de Saúde deverá assumir para viabilizar o sistema eletrônico de controle da vacinação. A própria criação do cartão eletrônico de vacinação tornaria obrigatória a ação do Município em diversos campos e aspectos, como preparação do sistema informatizado para o público e para as unidades e saúde, treinamento de pessoal, convocação da população para comprovar, individualmente, as vacinas já feitas (permitindo a alimentação do sistema) e recolhimento gradual dos modelos tradicionais de carteira de vacinação. Todas essas providências, por se referirem à organização administrativa e à prestação de serviços públicos, só podem ser implementadas a juízo do próprio Poder Executivo, no momento em que decidir pela viabilidade e oportunidade de tal avanço, considerando os aspectos operacionais, financeiros e administrativos.

Portanto, embora seja respeitável a intenção do proponente, a matéria ofende a chamada reserva de administração, insculpida no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal e no artigo 60 da Constituição Estadual, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, artigo 2º), ao dispor a respeito de serviço que, notadamente, envolve as atribuições dos órgãos da saúde, sobre o que cabe apenas ao Executivo providenciar.

Não se pode esquecer, por fim, do previsto no artigo 119 da Lei Orgânica Municipal, que, à semelhança dos citados dispositivos constitucionais, faz reserva de iniciativa aos projetos de lei sobre determinadas matérias:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública. (Redação dada pela Emenda à Lei Orgânica nº 2/2017)

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos que atribuam obrigações até então inexistentes aos órgãos da Administração Pública cabe apenas ao Chefe do Executivo, responsável pela organização administrativa.

A propósito, destaca-se a jurisprudência:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL Nº 1.794/2009 DO MUNICÍPIO DE ARROIO DO SAL/RS. CRIAÇÃO DE OUVIDORIAS DE SAÚDE NOS POSTOS DE SAÚDE DA REDE MUNICIPAL. MATÉRIA ATINENTE AO FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL. PROJETO APRESENTADO POR VEREADOR. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. Sobre o processo legislativo na esfera jurídica da União, o artigo 84, inciso VI, letra “a” da Constituição Federal atribui competência privativa ao Presidente da República, para dispor sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Por simetria, a regra se aplica aos Estados e aos Municípios. Assim, por tratar de matéria atinente ao funcionamento da administração municipal (criação de Ouvidorias de Saúde nos Postos de Saúde da Rede Municipal), e por ter sido apresentada por iniciativa do Poder Legislativo, padece de vício formal a Lei nº 1.794/2009, do Município de Arroio do Sal/RS. AÇÃO PROCEDENTE. UNÂNIME. (TJ-RS - ADI: 70032003584 RS, Relator: Genaro José Baroni Borges, Data de Julgamento: 13/12/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ do dia 17/12/2010).

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito apresente o projeto ao Legislativo, afastando, assim, a ocorrência do vício de iniciativa. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da CF/88, no artigo 60, II, alínea “d”, da CE/RS e no artigo 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Sugere-se ao autor, por outro lado, que a matéria seja proposta por meio de indicação ao Poder Executivo, nos termos do artigo 114 do Regimento Interno.

Guaíba, 07 de março de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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