Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 025/2018
PROPONENTE : Ver. Dr. João Collares
     
PARECER : Nº 038/2018
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Autoriza o Município de Guaíba a criar reserva de vagas ma educação infantil da rede pública municipal de ensino para filhos de agentes de segurança pública"

1. Relatório:

O Vereador Dr. João Collares apresentou o Projeto de Lei nº 025/2018 à Câmara Municipal, objetivando “autorizar” o Município de Guaíba a criar reserva de vagas na educação infantil da rede pública municipal de ensino para filhos de agentes da segurança pública. A proposta foi encaminhada à Procuradoria pela Presidência da Câmara para análise nos termos do artigo 105 do Regimento Interno. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local, eis que o Projeto de Lei nº 025/2018 concerne à reserva de vagas na educação infantil municipal, o que diz respeito ao estrito âmbito local, atendendo à competência do artigo 30, I, da Constituição Federal.

Quanto à matéria de fundo, também não há óbices. Isso porque o objetivo do projeto é, sobretudo, garantir o acesso à educação infantil aos filhos de agentes da segurança pública, o que vai ao encontro das normas constitucionais que tratam direito à educação. De acordo com o artigo 208, inc. I, da CF/88, o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria. Na mesma linha está o regramento do artigo 199 da Constituição Estadual.

Ainda, o artigo 227, caput, da Constituição Federal prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” A expressão “Estado”, obviamente, traduz-se em um conceito lato sensu, abrangendo União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Portanto, sob os aspectos da competência e material, não há óbices à tramitação do Projeto de Lei nº 025/2018. No entanto, embora louvável o seu objeto, a proposta contém vício de iniciativa. Para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF/88 e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Igualmente, dispõe a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

A Lei Orgânica Municipal também reserva a iniciativa da matéria ao Prefeito, em seu artigo 119, II, configurando-se caso de violação formal subjetiva do processo legislativo, por interferir na organização e nas obrigações do Poder Executivo:

Art. 119. É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre:

I - criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;

II - organização administrativa, matéria orçamentária e serviços públicos;

III - servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV - criação e extinção de Secretarias e órgãos da administração pública.

Verifica-se que a matéria ofende a chamada reserva de administração, insculpida no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal e no artigo 60 da Constituição Estadual, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, artigo 2º), ao dispor a respeito da organização dos serviços públicos educacionais, o que cabe ao Executivo legislar.

O propósito do Projeto de Lei nº 025/2018, de autoria do Vereador Dr. João Collares, apesar de ser digna de lauda quanto ao mérito, visa estabelecer obrigações ao Poder Executivo quanto à organização dos seus serviços de educação, invadindo a iniciativa privativa do Chefe do Executivo Municipal, prevista no referido artigo 61, § 1º, da Constituição Federal, aplicável por simetria aos demais entes federados. Veja-se a jurisprudência do STF:

O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo de positivação do Direito, gerado pela usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz vício jurídico de gravidade inquestionável, cuja ocorrência reflete típica hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do ato legislativo eventualmente editado (STF - Pleno, ADln 1.391-2/SP - ReI. Ministro Celso de Mello).

Ademais, destaca-se que a fórmula das típicas leis autorizativas (“Fica o Poder Executivo autorizado a...”), quando veicule matéria para a qual haja competência privativa de outra autoridade, também é contaminada por inconstitucionalidade formal, porque a lei, enquanto norma genérica, abstrata, imperativa e coercitiva, não admite simples concessões. Assim, mesmo quando meramente autorizativa, a lei transmite uma ordem a ser necessariamente cumprida:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE HERVAL. LEI AUTORIZATIVA. MATÉRIA QUE VERSA SOBRE ORGANIZAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO. INICIATIVA PRIVATIVA DO PODER LEGISLATIVO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. 1. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, a Lei Municipal n° 1.101/2013, do Município de Herval, que dispõe sobre o transporte para locomoção de alunos de Herval para Arroio Grande/RS, por tratar de matéria cuja competência privativa para legislar é do Chefe do Executivo. 2. A expressão "fica o Poder Executivo Municipal autorizado a viabilizar transporte...", em que pese a louvável intenção do legislador, não significa mera concessão de faculdade ao Prefeito para que assim proceda, possuindo evidente caráter impositivo. 3. Violação ao disposto nos artigos 8º, 10, 60, inciso II, e 82, inciso VII, todos da Constituição Estadual. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70055716161, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgado em 28/10/2013).

Desse modo, o Projeto de Lei nº 025/2018, de autoria parlamentar, invade a esfera de competências do Poder Executivo, eis que o “autoriza” a reservar vagas da educação infantil aos filhos de agentes da segurança pública, decisão que lhe é própria por interferir diretamente na organização da educação municipal.

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver ao autor a proposição em epígrafe, em razão de vício de iniciativa caracterizado com base no artigo 61, § 1º, da Constituição Federal, no artigo 60, II, alínea “d”, da Constituição Estadual, e nos artigos 52, VI e X, e 119, II, da Lei Orgânica Municipal.

Guaíba, 06 de março de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



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