Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 007/2018
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 037/2018
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Torna obrigatório o registro no prontuário de atendimento médico, indícios de violência contra a mulher, para fins de estatísticas e prevenção"

1. Relatório:

 O Projeto de Lei nº 007/2018, de autoria da Vereadora Claudinha Jardim, que torna obrigatório o registro, no prontuário de atendimento médico, dos indícios de violência contra a mulher, para fins de estatísticas e prevenção, foi encaminhado a esta Procuradoria Jurídica pelo Presidente da Câmara Municipal para análise com fulcro no art. 105 do Regimento Interno, a fim de que seja efetivado o controle quanto à constitucionalidade, à competência e ao caráter pessoal das proposições. 

2. Parecer:

De fato, a norma inscrita no art. 105 do Regimento Interno da Câmara Municipal outorga ao Presidente do Legislativo a possibilidade de devolução ao autor de proposições maculadas por manifesta inconstitucionalidade (art. 105, II), alheias à competência da Câmara (art. 105, I) ou de caráter pessoal (art. 105, III). Solução similar é encontrada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 137, § 1º) – parlamento em que o controle vem sendo exercido –, no Regimento Interno do Senado Federal (art. 48, XI – em que a solução é o arquivamento) e em diversos outros regimentos de casas legislativas pátrias.

A doutrina trata do sentido da norma jurídica inscrita no art. 105 do Regimento Interno caracterizando-o como o instituto do controle de constitucionalidade político ou preventivo, sendo tal controle exercido dentro do Parlamento, através de exame superficial pela Presidência da Mesa Diretora, considerado controle preventivo de constitucionalidade interno, antes que a proposição possa percorrer o trâmite legislativo. Via de regra, a devolução se perfaz por despacho fundamentado da Presidência, indicando o artigo constitucional violado, podendo o autor recorrer da decisão ao Plenário (art. 105, parágrafo único).

Inicialmente, quanto ao conteúdo da proposta, constata-se que busca criar obrigações aos profissionais de atendimento médico vinculados à rede pública e privada de saúde no sentido de, ao constatarem indícios de violência contra a mulher, registrarem tais informações no prontuário médico, sob pena de sanção administrativa.

As competências legislativas da CF/88 são divididas em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

As matérias de competência privativa da União estão previstas no artigo 22 da CF/88, estando presente, entre elas, a de estabelecer as condições para o exercício de profissões (inc. XVI). Sobre isso, vale destacar que, segundo Fernanda Dias Menezes de Almeida, “Prevê agora a Constituição de 1988 entre os direitos fundamentais, de modo mais amplo, a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (art. 5º, XIII), o mesmo repetindo quanto ao exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (art. 170, parágrafo único). Será lei federal, no caso, a lei disciplinadora, na perspectiva de unificação das condições de exercício profissional no país.” (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Comentários ao artigo 22, XVI. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 743).

Na competência privativa, a União tem por tarefa estabelecer, unicamente por sua iniciativa, as normas sobre determinadas matérias, só podendo autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas desses temas. Os Municípios, por sua vez, não possuem competência para legislar sobre quaisquer das matérias do artigo 22 da CF/88, ainda que sob o argumento do interesse local.

No caso em análise, o objeto geral do Projeto de Lei nº 007/18 é regulado em âmbito nacional pela Lei Federal nº 5.991/73, pelo Decreto nº 20.931/32 e Resolução CFM nº 1.931/2009, que estabeleceu o novo Código de Ética Médica (CEM), contendo as normas a serem seguidas pelos médicos no exercício da sua profissão, inclusive nas atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à administração de serviços de saúde, e de outras atividades em que se utilize o conhecimento da Medicina.

A propósito disso, o Código de Ética Médica estabelece, no seu Capítulo X, a disciplina dos documentos médicos, prevendo as vedações e as regras para a formulação das receitas e dos prontuários médicos. O artigo 87, tratando especificamente dos prontuários, determina o seguinte:

Capítulo X

DOCUMENTOS MÉDICOS

É vedado ao médico:

(...)

Art. 87. Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente.

§ 1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.

§ 2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente.

Veja-se que o Código de Ética Médica, com natureza de norma federal oriunda de conselho profissional, decorrente do poder normativo, estabelece a forma de preenchimento dos prontuários médicos, não prevendo expressamente a obrigatoriedade de registro de indícios de violência doméstica, embora tal providência seja possível a critério do médico.

No Decreto nº 20.931, de 11 de janeiro de 1932, são apresentados, no artigo 15, os deveres dos médicos, conforme se vê a seguir:

Art. 15 São deveres dos médicos:

a) notificar dentro do primeiro trimestre de cada ano à Inspetoria da Fiscalização do Exército da Medicina, do Departamento Nacional de Saúde Pública, no Distrito Federal, à autoridade sanitária local ou na sua ausência à autoridade policial, nos Estados, a sede do seu consultório ou a sua residência, para organização do cadastro médico regional (art. 6º);

b) escrever as receitas por extenso, legivelmente, em vernáculo, neIas indicando o uso interno ou externo dos medicamentos, o nome e a residência do doente, bem como a própria residência ou consultório;

c) ratificar em suas receitas a posologia dos medicamentos, sempre que esta for anormal, eximindo assim o farmacêutico de responsabilidade no seu aviamento;

d) observar fielmente as disposições regulamentares referentes às doenças de notificação compulsória;

e) atestar o óbito em impressos fornecidos pelas repartições sanitárias, com a exata causa mortis, de acordo com a nomenclatura nosológica internacional de estatística demógrafo-sanitária;

f) mencionar em seus anúncios somente os títulos científicos e a especialidade.

Embora o referido dispositivo se refira às receitas médicas, certo é que os prontuários também se revestem da qualidade de documentos médicos, sendo suficiente para demonstrar que a normatização das condutas médicas deve ser feita em âmbito federal, à luz da competência prevista no artigo 22, inc. XVI, da CF/88. Não cabe, portanto, aos Municípios dispor sobre o que deve o médico registrar nos prontuários dos seus atendimentos, visto ser matéria que foge do interesse local.

A propósito da questão, a jurisprudência do TJRS é pacificamente direcionada à incompetência dos Municípios para legislar sobre a forma dos documentos médicos:

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE HERVAL. LEI MUNICIPAL Nº 1.103/2013. FORMA DE EMISSÃO DE RECEITAS MÉDICAS. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. É manifesta a inconstitucionalidade da Lei nº 1.103, de 05 de junho de 2013, do Município de Herval, que disciplina a forma como devem ser emitidas as receitas médicas - exigindo sejam elas digitadas -, regrando o exercício da profissão médica no âmbito local, o que refoge ao âmbito de competência legislativa municipal, já que a iniciativa legislativa é de competência exclusiva da União. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70055716294, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 07/10/2013).

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. LEI LOCAL. FORMA DAS RECEITAS MEDICAS. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. 1. É inconstitucional a Lei 2.794/98, com a redação da Lei 2.814/94, do Município de Esteio, que impõe forma às receitas médicas, porque matéria legislativa reservada à União. Precedentes do Órgão Especial do TJRS. 2. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. VOTOS VENCIDOS. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70006465751, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 03/11/2003).

ADIN. LEI MUNICIPAL. COMPETE A UNIÃO LEGISLAR SOBRE A FORMA COMO DEVEM SER EXPEDIDAS RECEITAS MEDICAS E ODONTOLÓGICAS PELOS PROFISSIONAIS DA ÁREA. A LEI IGUALMENTE CRIA ATRIBUIÇÃO NOVA PARA A SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE, MATÉRIA QUE SERIA DE INICIATIVA DO PODER EXECUTIVO LOCAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70001990456, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alfredo Guilherme Englert, Julgado em 07/05/2001).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL QUE DETERMINA A UTILIZAÇÃO DE LETRA DE FORMA OU DATILOGRAFADA NAS RECEITAS MEDICAS PRESCRITAS DENTRO DO MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO REJEITADA, POR APRESENTAR-SE COMPETENTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO PARA O CONHECIMENTO E JULGAMENTO DE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, TENDO EM VISTA O PRINCIPIO DA SIMETRIA. NO MÉRITO, PROCEDENTE A AÇÃO EM RAZÃO DA INVASÃO EM MATÉRIA DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO. AFRONTA AOS ARTIGOS 1, 8 E 13, DA CARTA ESTADUAL. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70000063842, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 05/06/2000).

ADIN. LEI MUNICIPAL DISPONDO SOBRE COMO DEVEM SER ESCRITAS AS RECEITAS EMITIDAS POR MÉDICOS E DENTISTAS. INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. REJEIÇÃO DAS PRELIMINARES DE INÉPCIA DA INICIAL E DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70000926105, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Pilla da Silva, Julgado em 18/09/2000).

Desse modo, comprovada a chamada inconstitucionalidade manifesta de natureza formal orgânica, por inobservância da competência legislativa (artigo 22, inc. XVI, CF/88), outra medida não há senão a devolução da proposta à autora, nos termos regimentais. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria orienta pela possibilidade de o Presidente, por meio de despacho fundamentado, devolver à autora a proposição em epígrafe, em razão de inconstitucionalidade formal orgânica, pela violência da competência privativa da União (artigo 22, inc. XVI, CF/88).

Guaíba, 05 de março de 2018.

GUSTAVO DOBLER

Procurador

OAB/RS nº 110.114B



O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil.
Documento publicado digitalmente por GUSTAVO DOBLER em 07/03/2018 ás 14:19:32. Chave MD5 para verificação de integridade desta publicação 70f3a998ff7da47a8bbf81a7a09b6e6d.
A autenticidade deste poderá ser verificada em https://www.camaraguaiba.rs.gov.br/autenticidade, mediante código 49243.