PARECER JURÍDICO |
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"Dispõe sobre a instituição de Cadastro e Carteira de Identificação da Pessoa com TEA - Transtorno de Espectro Autista, e dá outras providências" 1. Relatório:A Vereadora Claudinha Jardim e o Vereador Florindo Motorista apresentaram o Projeto de Lei nº 131/2017 à Câmara Municipal, objetivando instituir o cadastro e a carteira de identificação de pessoa com TEA – Transtorno de Espectro Autista. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer. 2. Parecer:O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios. A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:
A medida que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque a matéria veiculada na proposta é de responsabilidade comum de todos os entes federados (artigo 23, inc. II, CF/88), não sendo uma competência privativa da União (artigo 22, CF/88), além do que a proposta tem repercussão municipal, pois se vincula apenas aos portadores do transtorno de espectro autista que tenham domicílio em Guaíba. Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do PL 131/2017 é promover a proteção das pessoas portadoras de autismo, mediante a criação de um cadastro específico e da emissão de carteira destinada a assegurar, com maior facilidade, o exercício dos direitos que lhes são próprios. O Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – norma que, aliás, possui o status de emenda constitucional –, prevê, no artigo 4º, item 1, que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência”, comprometendo-se a: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.” No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelece, no artigo 2º: “Considera-se pessoa com deficiência aquele que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Em específico no caso do autismo, a Lei Federal nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabeleceu diversos direitos, nos seguintes termos:
Por fim, no que diz respeito ao atendimento prioritário, a Lei nº 10.048/2000, no artigo 1º, estipula que “As pessoas com deficiência, os idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as gestantes, as lactantes, as pessoas com crianças de colo e os obesos terão atendimento prioritário, nos termos desta Lei.” Os portadores de autismo, nesse caso, são considerados pessoas com deficiência, para todos os efeitos legais, conforme preceitua o § 2º do artigo 1º da Lei Federal nº 12.764/2012. Portanto, para o regular exercício de todos esses direitos, inclusive o de atendimento prioritário, a instituição do cadastro e a emissão da carteira são relevantes. No entanto, embora louvável o seu objeto, o PL 131/17 contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do artigo 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder. Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo. Ocorre que essas normas são demasiadamente amplas e carregam conceitos genéricos (“organização administrativa”, “servidores públicos”, “criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”, “serviços públicos”), tornando-se quase impossível, na prática, a atividade legislativa por iniciativa parlamentar para atribuir obrigações ao Poder Executivo, porque geralmente esbarram na reserva de iniciativa legitimada pelo princípio da separação dos poderes. No caso em análise, embora indiscutível o mérito, a medida obriga a instituição de um cadastro específico e a emissão de carteiras destinadas aos portadores de autismo. Embora não esteja expresso na proposta, obviamente essas atribuições competirão ao Executivo, através de seus órgãos governamentais (Secretaria da Saúde, Secretaria da Assistência Social...), o que caracteriza interferência nos atos de organização administrativa que, inclusive, são capazes de gerar despesas não programadas pelo Executivo na lei orçamentária. Nessa linha, é importante lembrar que, nos termos do artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “b”, da CF/88, é privativa do Chefe do Executivo a iniciativa para projetos que disponham sobre organização administrativa, o mesmo se aplicando ao Estado do Rio Grande do Sul e aos seus Municípios, por força, também, do artigo 82, inc. III e VII, da CE/RS. Ainda, para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:
Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:
Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos dessa natureza é privativa do Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa e pelo planejamento dos serviços públicos, tais como os referentes ao atendimento, criação de cadastros e emissão de carteiras aos portadores do transtorno de espectro autista. A propósito da matéria, destaca-se a jurisprudência específica:
Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 131/2017 contém vício de iniciativa, por dispor sobre as atribuições de órgãos municipais e sobre a organização administrativa, matérias de iniciativa reservada ao Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF, do artigo 60, II, “d”, e do artigo 82, inc. III e VII, da CE/RS. Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito apresente o mesmo projeto ao Legislativo, afastando, assim, a ocorrência do vício de iniciativa. Conclusão:Diante do exposto, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 131/2017, pela ocorrência de vício de iniciativa, nada impedindo, contudo, que seja remetido ao Executivo sob a forma de indicação (artigo 114 do RI). Guaíba, 19 de dezembro de 2017. GUSTAVO DOBLER Procurador Jurídico O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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