Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 131/2017
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim e Ver. Florindo Motorista
     
PARECER : Nº 419/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Dispõe sobre a instituição de Cadastro e Carteira de Identificação da Pessoa com TEA - Transtorno de Espectro Autista, e dá outras providências"

1. Relatório:

A Vereadora Claudinha Jardim e o Vereador Florindo Motorista apresentaram o Projeto de Lei nº 131/2017 à Câmara Municipal, objetivando instituir o cadastro e a carteira de identificação de pessoa com TEA – Transtorno de Espectro Autista. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os Municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende instituir no âmbito do Município de Guaíba se insere, efetivamente, na definição de interesse local. Isso porque a matéria veiculada na proposta é de responsabilidade comum de todos os entes federados (artigo 23, inc. II, CF/88), não sendo uma competência privativa da União (artigo 22, CF/88), além do que a proposta tem repercussão municipal, pois se vincula apenas aos portadores do transtorno de espectro autista que tenham domicílio em Guaíba.

Quanto à matéria de fundo, também não há qualquer óbice à proposta. Convém lembrar que o objetivo primordial do PL 131/2017 é promover a proteção das pessoas portadoras de autismo, mediante a criação de um cadastro específico e da emissão de carteira destinada a assegurar, com maior facilidade, o exercício dos direitos que lhes são próprios.

O Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – norma que, aliás, possui o status de emenda constitucional –, prevê, no artigo 4º, item 1, que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência”, comprometendo-se a: “a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.”

No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 13.146/2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, estabelece, no artigo 2º: “Considera-se pessoa com deficiência aquele que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

Em específico no caso do autismo, a Lei Federal nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e estabeleceu diversos direitos, nos seguintes termos:

Art. 3º São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:

I - a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;

II - a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;

III - o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:

a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;

b) o atendimento multiprofissional;

c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;

d) os medicamentos;

e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento;

IV - o acesso:

a) à educação e ao ensino profissionalizante;

b) à moradia, inclusive à residência protegida;

c) ao mercado de trabalho;

d) à previdência social e à assistência social.

Por fim, no que diz respeito ao atendimento prioritário, a Lei nº 10.048/2000, no artigo 1º, estipula que “As pessoas com deficiência, os idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as gestantes, as lactantes, as pessoas com crianças de colo e os obesos terão atendimento prioritário, nos termos desta Lei.” Os portadores de autismo, nesse caso, são considerados pessoas com deficiência, para todos os efeitos legais, conforme preceitua o § 2º do artigo 1º da Lei Federal nº 12.764/2012.

Portanto, para o regular exercício de todos esses direitos, inclusive o de atendimento prioritário, a instituição do cadastro e a emissão da carteira são relevantes. No entanto, embora louvável o seu objeto, o PL 131/17 contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do artigo 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder.

Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo.

Ocorre que essas normas são demasiadamente amplas e carregam conceitos genéricos (“organização administrativa”, “servidores públicos”, “criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”, “serviços públicos”), tornando-se quase impossível, na prática, a atividade legislativa por iniciativa parlamentar para atribuir obrigações ao Poder Executivo, porque geralmente esbarram na reserva de iniciativa legitimada pelo princípio da separação dos poderes.

No caso em análise, embora indiscutível o mérito, a medida obriga a instituição de um cadastro específico e a emissão de carteiras destinadas aos portadores de autismo. Embora não esteja expresso na proposta, obviamente essas atribuições competirão ao Executivo, através de seus órgãos governamentais (Secretaria da Saúde, Secretaria da Assistência Social...), o que caracteriza interferência nos atos de organização administrativa que, inclusive, são capazes de gerar despesas não programadas pelo Executivo na lei orçamentária. Nessa linha, é importante lembrar que, nos termos do artigo 61, § 1º, inc. II, alínea “b”, da CF/88, é privativa do Chefe do Executivo a iniciativa para projetos que disponham sobre organização administrativa, o mesmo se aplicando ao Estado do Rio Grande do Sul e aos seus Municípios, por força, também, do artigo 82, inc. III e VII, da CE/RS.

Ainda, para os fins do direito municipal, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual no que diz respeito à iniciativa para o processo legislativo, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE. Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Na mesma linha, dispõe, ainda, a Lei Orgânica do Município de Guaíba sobre as hipóteses de competência privativa do Prefeito:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Destarte, apesar de ser honrosa sob o ponto de vista material, a proposta não poderia ter sido apresentada por membro do Poder Legislativo, uma vez que a iniciativa para projetos dessa natureza é privativa do Chefe do Executivo, enquanto responsável pela organização administrativa e pelo planejamento dos serviços públicos, tais como os referentes ao atendimento, criação de cadastros e emissão de carteiras aos portadores do transtorno de espectro autista.

A propósito da matéria, destaca-se a jurisprudência específica:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 4.037, DE 08 DE MAIO DE 2013, DO MUNICÍPIO DE VIAMÃO, QUE AUTORIZA A CRIAÇÃO DE CADASTRO DE ONGS E PESSOAS QUE CUIDAM DE CÃES E GATOS ABANDONADOS, PARA FORNECIMENTO DE RECURSOS, A FIM DE AUXILIAR NOS GASTOS COM ESTES ANIMAIS, BEM COMO DISPOR PARA ADOÇÃO. VÍCIO DE ORIGEM. MATÉRIA DE INICIATIVA PRIVATIVA DO PREFEITO. AUMENTO DE DESPESA. VÍCIO MATERIAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. OFENSA AOS ARTS. 5º, 8º, 10, 60, II, D, 82, VII, 149, I, II E III, E 154, I, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. A Lei nº 4.037/2013, do Município de Viamão, ao instituir cadastro e apoio financeiro a pessoas que cuidam, em lugar particular, de cães e gatos abandonados, destinando recursos municipais a essas pessoas, bem como determinando que os animais e os estabelecimentos cadastrados sejam acompanhados pela fiscalização municipal, imiscuiu-se na organização e funcionamento da Administração. O que inquina de inconstitucionalidade a norma é exatamente o vício de iniciativa, considerando que a competência legislativa para regular tal matéria é do Chefe do Executivo. Há, pois, ingerência do Poder Legislativo em matéria de competência exclusiva do Poder Executivo Municipal, violando o princípio constitucional da independência e harmonia dos Poderes, em ofensa ao disposto nos artigos 5º, 8º, 10, 60, II, d, e 82, VII, da Constituição Estadual. Para dar atendimento ao estabelecido na Lei Municipal nº 4.037/2013, haverá aumento de despesas, sem a devida previsão orçamentária, o que afronta os arts. 149, I, II e III, e 154, I, da Carta Estadual, incorrendo em inconstitucionalidade material. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70055118343, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 09/12/2013).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI MUNICIPAL Nº 9.640/2014 – MUNICÍPIO DE SANTO ANDRÉ – INICIATIVA PARLAMENTAR – LEI QUE DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DE CADASTRO MUNICIPAL DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA – INVASÃO DA COMPETÊNCIA RESERVADA AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO – INGERÊNCIA NA ADMINISTRAÇÃO DO MUNICÍPIO – VÍCIO DE INICIATIVA CONFIGURADO – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – CRIAÇÃO DE DESPESAS SEM A INDICAÇÃO DA FONTE DE CUSTEIO – VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 5º; 24, § 2º; 25; 47, XIX, 'A'; 144; 174, I, II E III; E 176, I, DA CONSTITUIÇÃO DE SÃO PAULO – PRECEDENTE – INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA – AÇÃO PROCEDENTE. (TJ-SP - ADI: 20136566820158260000 SP 2013656-68.2015.8.26.0000, Relator: João Negrini Filho, Data de Julgamento: 26/08/2015, Órgão Especial, Data de Publicação: 28/08/2015).

Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal n. 4.482/11 - Ato normativo que dispõe sobre o Programa Censo-lnclusão e Cadastro-lnclusão, destinado à identificação, mapeamento e cadastramento do perfil de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida - Norma de iniciativa parlamentar - Programa que engloba a gestão administrativa pública - Vício de iniciativa - Inteligência dos arts. 47, II, e 144, da CE - Precedentes deste E. Órgão Especial - Legislação federal que prevê a apuração pelo censo demográfico do número de pessoas portadoras de deficiência no país - Previsão orçamentária feita de modo genérico, em afronta ao disposto pelo art. 25, da CE - Inconstitucionalidade reconhecida - Ação procedente. (TJ-SP - ADI: 575096920128260000 SP 0057509-69.2012.8.26.0000, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 25/07/2012, Órgão Especial, Data de Publicação: 01/08/2012).

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 131/2017 contém vício de iniciativa, por dispor sobre as atribuições de órgãos municipais e sobre a organização administrativa, matérias de iniciativa reservada ao Chefe do Executivo, nos termos do artigo 61, § 1º, II, “b”, da CF, do artigo 60, II, “d”, e do artigo 82, inc. III e VII, da CE/RS.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito apresente o mesmo projeto ao Legislativo, afastando, assim, a ocorrência do vício de iniciativa. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 131/2017, pela ocorrência de vício de iniciativa, nada impedindo, contudo, que seja remetido ao Executivo sob a forma de indicação (artigo 114 do RI).

Guaíba, 19 de dezembro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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