Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 144/2017
PROPONENTE : Ver. Manoel Eletricista
     
PARECER : Nº 404/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Autoriza no âmbito municipal o serviço de transporte individual de passageiros por motocicleta, e dá outras providências"

1. Relatório:

O Vereador Manoel Eletricista apresentou o Projeto de Lei nº 144/2017 à Câmara Municipal, objetivando autorizar, em âmbito municipal, o serviço de transporte individual de passageiros por motocicleta. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 

2. Parecer:

O entendimento clássico do STF, até 2009, filiava-se ao sentido de que a competência para legislar sobre os serviços de mototáxi e de motofrete era privativa da União, nos termos do artigo 22, inc. XI, da CF/88 (“trânsito e transporte”), uma vez que, até então, tal serviço não possuía qualquer previsão no Código de Trânsito Brasileiro ou na legislação esparsa federal, situação que impediria os demais entes federados de, por si sós, regulamentarem a atividade em âmbito próprio. Veja-se:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DE SANTA CATARINA. LICENCIAMENTO DE MOTOCICLETAS DESTINADAS AO TRANSPORTE REMUNERADO DE PASSAGEIROS. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. É da competência exclusiva da União legislar sobre trânsito e transporte, sendo necessária expressa autorização em lei complementar para que a unidade federada possa exercer tal atribuição (CF, artigo 22, inciso XI, e parágrafo único). 2. Inconstitucional a norma ordinária estadual que autoriza a exploração de serviços de transporte remunerado de passageiros realizado por motocicletas, espécie de veículo de aluguel que não se acha contemplado no Código Nacional de Trânsito. 3. Matéria originária e de interesse nacional que deve ser regulada pela União após estudos relacionados com os requisitos de segurança, higiene, conforto e preservação da saúde pública. Ação direta de inconstitucionalidade procedente. (ADI 2606, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 21/11/2002, DJ 07-02-2003 PP-00021 EMENT VOL-02097-03 PP-00509).

Ocorre que, no ano de 2009, foi promulgada a Lei Federal nº 12.009, de 29 de julho, que “regulamenta o exercício das atividades dos profissionais em transporte de passageiros, ‘mototaxista’, em entrega de mercadorias e em serviço comunitário de rua, e ‘motoboy’, com o uso de motocicleta, altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, para dispor sobre regras de segurança dos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motocicletas e motonetas – moto-frete –, estabelece regras gerais para a regulação deste serviço e dá outras providências.” A referida lei, além de autorizar o transporte individual de passageiros, estabeleceu normas gerais sobre os requisitos necessários ao exercício da atividade, conforme preceituam os artigos 1º, 2º e 3º:

Art. 1º Esta Lei regulamenta o exercício das atividades dos profissionais em transportes de passageiros, “mototaxista”, em entrega de mercadorias e em serviço comunitário de rua, e “motoboy”, com o uso de motocicleta, dispõe sobre regras de segurança dos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motocicletas e motonetas – moto-frete –, estabelece regras gerais para a regulação deste serviço e dá outras providências.

Art. 2º Para o exercício das atividades previstas no art. 1º, é necessário:

I – ter completado 21 (vinte e um) anos;

II – possuir habilitação, por pelo menos 2 (dois) anos, na categoria;

III – ser aprovado em curso especializado, nos termos da regulamentação do Contran;

IV – estar vestido com colete de segurança dotado de dispositivos retrorrefletivos, nos termos da regulamentação do Contran.

Parágrafo único.  Do profissional de serviço comunitário de rua serão exigidos ainda os seguintes documentos:

I – carteira de identidade;

II – título de eleitor;

III – cédula de identificação do contribuinte – CIC;

IV – atestado de residência;

V – certidões negativas das varas criminais;

VI – identificação da motocicleta utilizada em serviço.

Art. 3º São atividades específicas dos profissionais de que trata o art. 1º:

I – transporte de mercadorias de volume compatível com a capacidade do veículo;

II – transporte de passageiros.

A atividade de transporte individual de passageiros por “mototáxi”, portanto, já é autorizada em todo o território nacional, por meio da Lei Federal nº 12.009/09. O artigo 8º desse diploma legal prevê que cabe ao Contran (Conselho Nacional de Trânsito) regulamentar o disposto no artigo 2º, o que, de fato, foi feito através da Resolução nº 356, de 02 de agosto de 2010. Na regulamentação, o artigo 16 estabelece: “Os Municípios que regulamentarem a prestação de serviços de mototáxi ou motofrete deverão fazê-lo em legislação própria, atendendo, no mínimo, ao disposto nesta Resolução, podendo estabelecer normas complementares, conforme as peculiaridades locais, garantindo condições técnicas e requisitos de segurança, higiene e conforto dos usuários dos serviços, na forma do disposto no art. 107 do CTB.” Com isso, deu-se por encerrada a controvérsia no que diz respeito à competência dos Municípios para legislarem sobre os serviços de mototáxi e motofrete, reconhecendo-se a legitimidade de leis por eles criadas. A propósito, destaca-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

ADI COM PEDIDO DE LIMINAR. LEI Nº 862/2013, DO MUNICÍPIO DE OURO PRETO. SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO E INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS: MOTOTÁXI E MOTOFRETE. (...) Após a edição, pela União, da Lei nº 12.009, de 29 de julho de 2009 (art. 139-B), firmou-se o entendimento de que podem os Municípios legislar sobre o transporte remunerado de passageiros e de mercadorias por motocicletas. (TJ-MG - Ação Direta Inconst: 10000140757162000 MG, Relator: Marcos Lincoln, Data de Julgamento: 01/06/2015, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data de Publicação: 19/06/2015).

Ocorre que o Projeto de Lei nº 144/2017, por tratar da regulamentação de um serviço público de interesse local, tal como acontece com os táxis, contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do artigo 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder.

Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo.

Ocorre que essas normas são demasiadamente amplas e carregam conceitos genéricos (“organização administrativa”, “servidores públicos”, “criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”, “serviços públicos”), tornando-se quase impossível, na prática, a atividade legislativa por iniciativa parlamentar para atribuir obrigações ao Poder Executivo, porque geralmente esbarram na reserva de iniciativa legitimada pelo princípio da separação dos poderes.

No caso em análise, embora seja indiscutível o mérito, o Projeto de Lei 144/17 regulamenta um serviço público de interesse local, tal como o serviço de táxis, que são regulamentados pela Lei Municipal nº 1.558/00, de iniciativa do Executivo, invadindo, portanto, a iniciativa privativa prevista no artigo 60, inc. II, alínea “d”, da Constituição Gaúcha:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

Outrossim, a Lei Orgânica do Município e Guaíba também faz reserva de iniciativa nos casos de planejamento e da execução dos serviços públicos municipais, bem como das questões de organização e funcionamento da administração, conforme se vê:

Art. 52 - Compete privativamente ao Prefeito:

(...)

VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, na forma da Lei;

(...)

X – planejar e promover a execução dos serviços públicos municipais;

Assim, embora sejam admiráveis a justificativa e os termos da proposta, o Projeto de Lei nº 144/2017 contém vício de iniciativa, por consistir na regulamentação de um serviço público de interesse local e, consequentemente, das atribuições dos órgãos da administração pública vinculados a essa temática, cabendo ao Chefe do Executivo a iniciativa, nos termos do artigo 60, inc. II, “d”, da CE/RS e artigo 52, inc. X, da Lei Orgânica Municipal.

Nada impede, contudo, que a proposta seja remetida ao Executivo sob a forma de indicação, com base no artigo 114 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Guaíba, para que, pela via política, o Prefeito apresente o mesmo projeto ao Legislativo, afastando, assim, a ocorrência do vício de iniciativa. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 144/2017, pela ocorrência de vício de iniciativa, nada impedindo, contudo, que seja remetido ao Executivo sob a forma de indicação (artigo 114 do RI).

Guaíba, 13 de dezembro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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