PARECER JURÍDICO |
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"Institui a obrigatoriedade de disponibilidade aos clientes de bares, restaurantes, lanchonetes e hotéis cardápios em braile" 1. Relatório:A Vereadora Fernanda Garcia apresentou o Projeto de Lei nº 116/2017 à Câmara Municipal, objetivando obrigar os bares, restaurantes, lanchonetes e hotéis do Município de Guaíba a disponibilizarem cardápios em braile. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 2. Parecer:O IGAM, na orientação técnica nº 27.139/2017, sustentou a inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº 116/2017 em três pontos: a) violação da regra de competência prevista no artigo 24, inciso V, da CF/88, que defere a capacidade de legislar sobre produção e consumo apenas à União, aos Estados e ao Distrito Federal; b) reserva de iniciativa ao Chefe do Executivo para a previsão de multas pelo descumprimento da obrigação, por referir-se à organização dos serviços da administração pública; c) indevida intervenção no livre exercício das atividades privadas (artigo 1º, IV, e artigo 170, IV, da CF/88). Com total respeito às alegações do IGAM, a Procuradoria discorda da orientação técnica. 1. Da competência legislativa suplementar do Município A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao DF; as de interesse local, por fim, aos Municípios. No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios. Em relação à matéria de produção e consumo, a CF/88, de fato, estabelece a competência concorrente para a União legislar sobre normas gerais (artigo 24, § 1º) e para os Estados e o Distrito Federal suplementá-las (artigo 24, § 2º). Ocorre que o artigo 30, inciso II, da CF/88 é claro ao garantir aos Municípios a competência para suplementar as normas federais e estaduais, no que couber. A interpretação adequada das regras constitucionais de distribuição de competências legislativas é a que garante ampla outorga de poderes aos Municípios, que só não podem criar normas que esbarrem na competência privativa do artigo 22 da CF, atribuída rigorosamente à União, nada impedindo, por outro lado, que legislem com base na competência suplementar para atender ao seu interesse local. Tanto é que, caso não se admitisse aos Municípios a competência para legislar sobre matérias versadas no artigo 24 da CF/88, não seria possível a formação dos típicos códigos sanitários (“proteção e defesa da saúde – artigo 24, inciso XII), códigos ambientais (“proteção do meio ambiente” – artigo 24, inciso VI), códigos tributários e leis de ordenamento territorial (“direito tributário” e “direito urbanístico” – artigo 24, inciso I). A propósito, cabe apresentar a lição doutrinária de Paulo Bessa Antunes quanto à competência suplementar dos Municípios para legislar sobre proteção e defesa do meio ambiente, que também consta no artigo 24 da CF/88 e, em função disso, também serve de fundamento para a garantia da competência legislativa municipal em matéria de consumo e proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência:
Para sanar quaisquer dúvidas remanescentes sobre a matéria, é importante destacar o entendimento firmado no STF (RE nº 586.224/SP, julgado em 5/3/2015), publicado no Informativo nº 776:
Considerando, portanto, a competência do Município para legislar sobre direito ambiental – que, tal como a matéria de produção e consumo, consta no artigo 24 da CF –, vislumbra-se também a competência suplementar para legislar sobre a presente matéria, desde que existente norma geral dispondo sobre os direitos do consumidor. Nesse sentido, a lição da jurisprudência:
Portanto, não prospera a alegação de que o Município não dispõe de competência para legislar sobre a matéria posta no Projeto de Lei nº 116/2017, porque se trata de suplementação, em âmbito local, das normas estabelecidas no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei Federal nº 13.146/15) e no Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90). 2. Da iniciativa concorrente para legislar sobre a fixação de multas O IGAM, na orientação técnica nº 27.319/2017, referiu que a fixação de multas pelo descumprimento de obrigações legais é de iniciativa privativa do Chefe do Executivo, porque atos como a fiscalização do cumprimento e autuações competem aos servidores do Executivo, o que interfere na organização e funcionamento dos serviços municipais. Inicialmente, cabe referir que o próprio IGAM, em consultoria prestada no dia 18/08/2017 (orientação técnica nº 21.581/2017), recomendou que, em projeto de lei cujo objeto era a obrigação de afixar avisos, em estabelecimentos comerciais, de que os crimes contra as crianças e adolescentes são passíveis das penas previstas em lei, seria viável e, sobretudo, recomendável a cominação de penalidades para que a proposta, caso aprovada, não fosse inócua. Em diversos outros projetos de lei que tramitaram nesta Câmara de Vereadores, o IGAM também sugeriu a adoção dessa medida, a exemplo do Projeto de Lei nº 121/2017, de autoria parlamentar, em que constou a seguinte nota: “Sugere-se que sejam colocadas penalidades para que a futura lei, se aprovado o projeto, não seja inócua. Ainda, que se utilize para dosimetria da pena somente com valores, a fim de evitar questionamento acerca das medidas de caráter administrativo, que são da iniciativa legislativa do Prefeito.” (orientação técnica nº 28.559/2017). Portanto, percebe-se certa contradição em orientações técnicas do IGAM, que, por vezes, adota – e, inclusive, recomenda – a possibilidade de fixação de multas por descumprimento de obrigações legais através de proposta parlamentar, enquanto, em momentos outros, defende ser inviável tal medida por invadir a iniciativa privativa do Prefeito. De qualquer modo, o entendimento desta Procuradoria é pela possibilidade de fixação de multa através de proposta parlamentar. Como base, tem-se o acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2028694-23.2015.8.26.0000, do TJSP. No referido acórdão, em que se discutiu a constitucionalidade da Lei nº 6.173, de 4 de novembro de 2014, do Município de Ourinhos, justamente por terem sido cominadas penalidades administrativas pelo descumprimento da obrigação de afixar avisos escritos sobre os crimes praticados contra crianças e adolescentes, o Tribunal defendeu que a matéria objeto da referida lei não diz respeito à organização e funcionamento da Administração Pública – o que poderia macular o diploma de vício formal de inconstitucionalidade –, destinando-se a regra aos particulares no âmbito de suas atividades empresariais. Além disso, o Tribunal de Justiça asseverou inexistir, na prática, qualquer aumento de despesa a atrair a iniciativa privativa do Chefe do Executivo para a propositura do projeto, uma vez que já há estrutura administrativa em funcionamento que executa o poder de polícia nos comércios e serviços locais, sendo que “o dever de fiscalização do cumprimento das normas é conatural aos atos normativos e não tem, no caso, efeito de gerar despesas ao Município.” No que diz respeito ao Município de Guaíba, de acordo com o relatório de cargos referente ao mês de agosto de 2017, publicado no sítio da Prefeitura[1], há um total de 10 (dez) cargos ocupados de Fiscal de Tributos e Posturas, cujas atribuições, nos termos da Lei Municipal nº 1.116/93, incluem:
Portanto, constata-se que já há estrutura administrativa organizada para promover o exercício do poder de polícia no Município de Guaíba, especialmente para “cumprir e fazer cumprir as leis, decretos, atos administrativos e o que mais couber”, de tal forma que a cominação de penalidade administrativa para o descumprimento da obrigação prevista no projeto de lei em análise não acarretará aumento de despesa para a sua efetiva aplicação; do contrário, o produto das multas constituirá fonte de receita em favor da Administração Pública, que poderá melhor equipar-se para atender aos objetivos de interesse público. Desse modo, não se observa iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo para a fixação de multas pelo descumprimento de obrigações legais, sendo a iniciativa concorrente no presente caso. 3. Da inexistência de intervenção no livre exercício das atividades privadas Embora o IGAM sustente que a medida proposta interfira drasticamente no livre exercício das atividades privadas, é de se destacar, primeiramente, que se trata de providência simples a ser implementada pelo comércio local, sem capacidade para interferir na projeção dos custos ou dos lucros, fator primordial de qualquer organização empresarial. A garantia de um mero cardápio em braile por cada estabelecimento não tem o condão de intervir gravemente no livre exercício das atividades privadas, mas, por outro lado, assegura, em sua plenitude, o direito das pessoas com deficiência a terem acesso às informações sobre os serviços prestados em cada estabelecimento, o que é de interesse do próprio empresário. Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram, em seu núcleo, a prerrogativa de que todos podem exercer atividades empresariais como meio de sobrevivência, desde que atendam às condições estabelecidas em lei. Trata-se, portanto, de uma garantia ligada à liberdade, direito fundamental de primeira dimensão que obriga o Estado a adotar uma posição de inércia em relação aos cidadãos, que se autodeterminam conforme a própria vontade. Como todo e qualquer princípio constitucional, não há absolutismos. Se, por um lado, o livre exercício do trabalho não admite interferências estatais graves, por outro a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, de acordo com os ditames da justiça social, observados os princípios de defesa do consumidor e de redução das desigualdades regionais e sociais (artigo 170, inc. V e VII, CF/88). Sob o ponto de vista da proporcionalidade, tenho que a medida proposta não causa uma grave interferência no exercício da atividade privada a ponto de torná-la inviável. Como referido anteriormente, trata-se de medida simples a ser implementada em cada estabelecimento e que permitirá o pleno exercício do direito à informação por aqueles que estão impossibilitados de enxergar. O princípio da proporcionalidade se divide em três parâmetros a serem observados pelo intérprete: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação se faz presente quando a medida escolhida é idônea para atingir o objetivo; a necessidade, por sua vez, exige que a medida adotada seja indispensável para alcançar a finalidade, não sendo substituível por outras menos gravosas; a proporcionalidade em sentido estrito, por fim, é a análise do equilíbrio entre os danos da restrição de um direito fundamental e as vantagens da preponderância de outro direito fundamental. No caso em análise, a verificação da proporcionalidade da medida pretendida com o Projeto de Lei nº 116/2017 impõe os seguintes questionamentos: a criação de uma lei tornando obrigatório o fornecimento de cardápio em braile é medida adequada para garantir o direito à informação pelos cegos? A obrigação de providenciar alguns poucos cardápios em braile é medida necessária para garantir tal direito, não havendo medida menos restritiva capaz de alcançar esse objetivo, com a conciliação dos interesses? Os benefícios a serem obtidos com a restrição justificam os meios empregados? Creio que a medida seja adequada, necessária e proporcional, porque a lei, enquanto preceito impositivo, tornará obrigatória a disponibilização de cardápios adaptados a quem deles precise, medida simples e que não causará interferência na projeção de custos e lucros das empresas (fator principal de qualquer atividade empresarial), além do que os ganhos serão muito maiores do que prejuízos, uma vez que é do próprio interesse do empresário garantir o pleno acesso da população aos seus serviços, independentemente de possuir ou não alguma deficiência, pois todos se enquadram na categoria “clientes pagantes”. Não se pode esquecer, ainda, de que a legislação brasileira prevê, em inúmeros títulos legais, a garantia de acessibilidade aos portadores de deficiência física ou que possuam mobilidade reduzida, a exemplo da Lei Federal nº 13.146/15, que criou um verdadeiro estatuto da pessoa com deficiência. A CF/88, por fim, atribui a todos os entes federados a competência material para proteger e garantir os direitos das pessoas com deficiência, o que legitima constitucionalmente a proposta em análise. Assim, a despeito do parecer do IGAM, não vejo qualquer vício de natureza formal ou material a impedir a regular tramitação do Projeto de Lei nº 116/2017. Sugere-se apenas emenda nos artigos 1º e 2º para tornar a redação mais clara e precisa nos seus objetivos, nos seguintes termos:
Conclusão:Diante do exposto, a Procuradoria opina pela legalidade e pela regular tramitação do Projeto de Lei nº 116/2017, apenas recomendando mudança na redação dos artigos 1º e 2º, para tornar mais clara a precisa a aplicação dos dispositivos. É o parecer. Guaíba, 23 de novembro de 2017. GUSTAVO DOBLER Procurador Jurídico O Documento ainda não recebeu assinaturas digitais no padrão ICP-Brasil. |
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