Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 125/2017
PROPONENTE : Ver. Dr. Renan Pereira
     
PARECER : Nº 367/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Dispõe sobre a realização anual de atividades direcionadas ao enfrentamento do HIV/AIDS durante o mês de dezembro"

1. Relatório:

O Vereador Dr. Renan Pereira apresentou o Projeto de Lei nº 125/2017 à Câmara Municipal, dispondo sobre a realização anual de atividades direcionadas ao enfrentamento do HIV/AIDS durante o mês de dezembro. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 

2. Parecer:

O artigo 18 da Constituição Federal de 1988, inaugurando o tema da organização do Estado, prevê que “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” O termo “autonomia política”, sob o ponto de vista jurídico, congrega um conjunto de capacidades conferidas aos entes federados para instituir a sua organização, legislação, a administração e o governo próprios.

A autoadministração e a autolegislação, contemplando o conjunto de competências materiais e legislativas previstas na Constituição Federal para os municípios, é tratada no artigo 30 da Lei Maior, nos seguintes termos:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A medida que se pretende instituir se insere, efetivamente, na definição de interesse local, porque diz respeito à garantia do direito à saúde, cuja responsabilidade é de todos os entes federados, conforme preceituam os artigos 6º, 23, II, e 196, caput, da CF/88. Quanto à matéria de fundo, não há óbices à tramitação da proposta, em virtude dos mesmos motivos que legitimam a competência do Município para legislar no caso.

A Constituição Federal, no artigo 196, prevê: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” O artigo 198, por sua vez, estabelece que os serviços de saúde se desenvolvem por meio de um sistema público organizado e mantido com recursos do Poder Público, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

Percebe-se, pois, que o Projeto de Lei nº 125/2017 está em consonância com o regramento constitucional a respeito do direito à saúde, especialmente consagrado no artigo 6º como direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º do artigo 5º da CF.

Ocorre que o Projeto de Lei nº 125/2017, da forma como elaborada a sua redação, contém vício de iniciativa. O sistema constitucional brasileiro se estruturou no princípio da tripartição dos poderes, na forma do artigo 2º da CF/88, de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo sido distribuídas funções típicas e atípicas aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os quais, entre si, são independentes e harmônicos. A mesma norma que institui a separação dos poderes proíbe ingerências indevidas de um poder sobre outro, de forma a garantir a já referida harmonia, motivo pelo qual a Constituição Federal estabeleceu determinadas matérias para as quais há reserva de iniciativa ao Chefe do Poder Executivo, por dizerem respeito a questões de organização administrativa e, especialmente, que estão sob o controle e gerenciamento do titular desse poder.

Na CF/88, a reserva de iniciativa está prevista no artigo 61, § 1º, repetida na CE/RS pelo artigo 60, os quais preveem os inúmeros casos em que apenas o Chefe do Poder Executivo poderá deflagrar o processo legislativo. Por serem normas restritivas, tão somente essas hipóteses são reservadas ao Executivo; os demais casos são de iniciativa concorrente, garantindo-se a legitimidade das propostas por parte de membros do Legislativo.

Ocorre que essas normas são demasiadamente amplas e carregam conceitos genéricos (“organização administrativa”, “servidores públicos”, “criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública”, “serviços públicos”), tornando-se quase impossível, na prática, a atividade legislativa por iniciativa parlamentar para atribuir obrigações ao Poder Executivo, porque geralmente esbarram na reserva de iniciativa legitimada pelo princípio da separação dos poderes.

No caso em análise, embora seja indiscutível o mérito, a medida determina a realização de diversas atividades direcionadas ao enfretamento do HIV/AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis pelo Executivo em conjunto com o Legislativo e o Judiciário, transpondo os limites do princípio da separação dos poderes. Além disso, no que concerne à iniciativa para a deflagração do processo legislativo, relevante é a observância das normas previstas na Constituição Estadual, uma vez que, em caso de eventual controle de constitucionalidade, o parâmetro para a análise da conformidade vertical se dá em relação ao disposto na Constituição Gaúcha, conforme preveem o artigo 125, § 2º, da CF e o artigo 95, XII, alínea “d”, da CE/RS. Apenas excepcionalmente o parâmetro da constitucionalidade será a Constituição Federal, desde que se trate de normas constitucionais de reprodução obrigatória (STF, RE nº 650.898/RS). Nesse caso, refere o artigo 60 da Constituição Estadual:

Art. 60.  São de iniciativa privativa do Governador do Estado as leis que:

I - fixem ou modifiquem os efetivos da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 67, de 17/06/14)

II - disponham sobre:

a) criação e aumento da remuneração de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta ou autárquica;

b) servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, e reforma ou transferência de militares para a inatividade;

c) organização da Defensoria Pública do Estado;

d) criação, estruturação e atribuições das Secretarias e órgãos da administração pública.

No âmbito municipal, a Lei Orgânica estabelece as competências legislativas privativas do Prefeito no artigo 119, nos seguintes termos:

Art. 119 É competência exclusiva do Prefeito a iniciativa dos projetos-de-lei que:

I - disponham sob matéria financeira;

II - criem cargos, funções ou empregos públicos, fixem ou alterem vencimentos e vantagens dos servidores públicos;

III - disponham sobre matéria tributária, orçamentos, aberturas de créditos, concessão de subvenções, de auxílios ou que, de qualquer forma, autorizem, criem ou aumentem a despesa pública.

O parágrafo único do artigo 1º do Projeto de Lei nº 125/2017, relacionando as atividades a serem desenvolvidas na prevenção e no combate ao HIV/AIDS e outras DST, refere: “Mediante a participação direta e critérios dos gestores da área da saúde, educação, direitos humanos e outras afins, serão desenvolvidas atividades em consonância com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) de modo integrado e com os poderes executivo, legislativo e judiciário e, fundamentalmente, com entidades e instituições do movimento social organizado, Organismos Internacionais, Órgãos governamentais e a Câmara Municipal de Guaíba, como forma de contribuir para a resposta brasileira à epidemia...”. Veja-se, portanto, que o dispositivo relacionou deveres a serem cumpridos por diversos órgãos da esfera governamental, ultrapassando os limites do princípio da separação dos poderes e atingindo a reserva de iniciativa prevista no artigo 60, II, “d”, da CE/RS.

É importante lembrar novamente que não se está defendendo a inconstitucionalidade da proposta sob o ponto de vista material. Pelo contrário, as medidas são de extrema relevância para o combate e a prevenção da HIV/AIDS e outras DST. A inconstitucionalidade, na situação, restringe-se apenas ao aspecto formal da iniciativa, que é reservada ao Chefe do Poder Executivo, já que a proposta diz respeito às atribuições dos órgãos da administração pública (sobre o que deve ser realizado no mês de dezembro de cada ano). Eis o posicionamento da jurisprudência:

ADIN LEI MUNICIPAL. VÍCIO DE INICIATIVA. MATÉRIA DE NATUREZA ADMINISTRATIVA. INICIATIVA PRIVATIVA DO PREFEITO. MATÉRIA QUE VERSA SOBRE ORGANIZAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO. INFRAÇÃO AOS ARTS. 10, 62, INCISO II, ALÍNEA "D", E 82, INCISO VII, C/C ARTIGO 8, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, a Lei Municipal que cria a obrigatoriedade da realização de palestras e oficinas de prevenção às drogas, entorpecentes e DST/AIDS nas atividades das escolas de ensino fundamental da rede municipal de Arroio do Sal determinando condutas administrativas próprias do Executivo e criando despesas sem prévia previsão orçamentária, em afronta aos princípios da simetria e independência entre os poderes. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70032003436, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio dos Santos Caminha, Julgado em 14/12/2009).

Em âmbito federal, a Lei nº 13.504, de 07 de novembro de 2017, institui a campanha nacional de prevenção ao HIV/AIDS e outras infecções sexualmente transmissíveis, denominada Dezembro Vermelho. A norma federal, de aplicação em todo o território nacional, prevê atividades tais como as que se pretende instituir no Projeto de Lei nº 125/2017.

Portanto, para que não haja violação à reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, sugere-se a simplificação do Projeto de Lei nº 125/2017, nesses termos: “Art. 1º Fica instituído, no Município de Guaíba, o Dezembro Vermelho, destinado à realização de medidas de prevenção e combate ao HIV/AIDS e a outras doenças sexualmente transmissíveis. Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.” E, assim, tendo em vista que já se aplica em todo o território nacional a lei federal antes mencionada, cabe o envio de indicações e/ou requerimentos ao Executivo para fomentar a realização dos atos relacionados na campanha nacional, aliado à eventual lei que institua, em âmbito local, o “Dezembro Vermelho”.

Desse modo, para que o Projeto de Lei nº 125/2017 se torne viável juridicamente, é imprescindível realizar as alterações acima indicadas na redação, retirando a atribuição de obrigações aos demais poderes e a órgãos governamentais. Recomenda-se, ainda, o envio de indicações e/ou requerimentos ao Executivo para estimular a realização de atividades de prevenção e de combate ao HIV/AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis à luz da campanha nacional criada pela Lei Federal nº 13.504/17, em conjunto com eventual lei que institua, em âmbito local, o “Dezembro Vermelho”.

Caso se pretenda, de fato, manter os termos da proposta original, com a atribuição de tarefas aos demais poderes de Estado e a órgãos governamentais, indispensável a apresentação da proposta pelo Executivo, cabendo indicação por parte deste Poder Legislativo, nos termos do artigo 114 do Regimento Interno da Câmara de Vereadores. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina que a viabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 125/2017 está condicionada ao atendimento das recomendações apresentadas, cuja adaptação deve ocorrer por meio de substitutivo. Do contrário, a proposta é formalmente inconstitucional, pela ocorrência de vício de iniciativa (artigo 60, inciso II, “d”, CE/RS). Nada impede, por outro lado, que seja remetida uma indicação ao Executivo com os termos da proposta, na forma do artigo 114 do Regimento Interno da Câmara de Vereadores.

É o parecer.

Guaíba, 20 de novembro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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