Câmara de Vereadores de Guaíba

PARECER JURÍDICO

PROCESSO : Projeto de Lei do Legislativo n.º 086/2017
PROPONENTE : Ver.ª Claudinha Jardim
     
PARECER : Nº 347/2017
REQUERENTE : Comissão de Constituição, Justiça e Redação

"Fica prescrito aos bares, restaurantes e estabelecimentos similares conceder desconto especial de porção reduzida às pessoas que tenham realizado cirurgia bariátrica ou outra gastroplastia"

1. Relatório:

A Vereadora Claudinha Jardim apresentou o Projeto de Lei nº 086/2017 à Câmara Municipal, objetivando tornar obrigatório aos bares, restaurantes e estabelecimentos similares conceder desconto especial de porção reduzida às pessoas que tenham realizado cirurgia bariátrica ou outra gastroplastia. Encaminhado à Comissão de Justiça e Redação, o projeto foi remetido a esta Procuradoria, para parecer jurídico. 

2. Parecer:

A forma federativa de Estado adotada pelo Brasil na CF/88 implica, entre outras consequências, a distribuição de competências materiais e legislativas a todos os entes que a compõem, de acordo com o critério da predominância do interesse: as matérias de interesse geral devem ser atribuídas à União; as de interesse regional devem ser entregues aos Estados e ao DF; as de interesse local, por fim, aos Municípios.

No que concerne às competências legislativas, a CF/88 as divide em: a) privativa (artigo 22): atende ao interesse nacional, atribuída apenas à União, com possibilidade de outorga aos Estados para legislar sobre pontos específicos, desde que por lei complementar; b) concorrente (artigo 24, caput): atende ao interesse regional, atribuída à União, para legislar sobre normas gerais, e aos Estados e ao DF, para legislar sobre normas específicas; c) exclusiva (artigo 30, I): atende ao interesse local, atribuída aos Municípios; d) suplementar (artigo 24, § 2º, e artigo 30, II): garante aos Estados suplementar a legislação federal, no que couber, bem como aos Municípios fazer o mesmo em relação às leis federais e estaduais; e) remanescente estadual (artigo 25, § 1º): aos Estados são atribuídas as competências que não sejam vedadas pela Constituição; f) remanescente distrital (artigo 32, § 1º): ao DF são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios.

Após ampla pesquisa jurídica a respeito da matéria posta no Projeto de Lei nº 086/2017, foram encontrados inúmeros acórdãos em ações diretas de inconstitucionalidade declarando a incompatibilidade formal de leis municipais por violarem as regras de competência previstas no art. 22, I, e no art. 24, V, da CF/88. A ADI nº 0015556-91.2013.8.26.0000, a ADI nº 2042147-22.2014.8.26.0000 e a ADI nº 2140952-39.2016.8.26.0000, todas do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a ADI nº 0037555-96.2016.8.08.0000, do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, e a ADI nº 1404297-02.2016.8.12.0000, do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul, tiveram os pedidos julgados procedentes para declarar a inconstitucionalidade de leis municipais com base nesse fundamento.

De fato, o artigo 22, I, da CF/88 estabelece a competência legislativa privativa da União para legislar sobre direito comercial, assim como o artigo 24, V, prevê a competência legislativa concorrente para a União, os Estados e o DF legislarem sobre produção e consumo. O tema posto no Projeto de Lei nº 086/2017 diz respeito, claramente, a essas matérias, atraindo a competência para legislar apenas à União, aos Estados e ao Distrito Federal.

A norma que se pretende instituir, por outro lado, não se restringe ao predominante interesse local, fundamento para a competência exclusiva dos Municípios prevista no artigo 30, I, da CF/88. Como restou assentado nos diversos acórdãos citados, “a questão referente à situação especial de pessoas submetidas à cirurgia bariátrica é de ordem geral, devendo eventual disciplina sobre o assunto ter abrangência nacional ou regional.” Isto é, a aplicação da norma surtiria efeitos não apenas em âmbito local, porquanto todas as pessoas que tenham a condição de pós-operados em cirurgia bariátrica, independentemente da sua origem ou residência, poderiam se beneficiar do pretendido desconto especial, daí a necessidade de garantir o direito em âmbito nacional ou regional, com base na competência estabelecida no artigo 22, I, ou no artigo 24, V, da CF/88.

A propósito, tramita, no STF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5561, proposta pela Associação Brasileira de Gastronomia, Hospedagem e Turismo (ABRESI) em face da Lei Estadual nº 16.270/16, do Estado de São Paulo, exatamente sobre o tema que se pretende aprovar no Projeto de Lei nº 086/2017. O referido diploma legal, na época da tramitação legislativa, foi totalmente vetado pelo Governador do Estado sob o fundamento de inconstitucionalidade, mas o veto foi derrubado pela Assembleia Legislativa, promulgando-se a lei estadual. A tendência é que o STF, amparado nos fundamentos dos acórdãos dos tribunais de justiça, venha a declarar a lei inconstitucional.

Os diversos julgados já citados neste parecer também declaram ocorrer afronta aos princípios gerais da ordem econômica (art. 170, c/c art. 1º, IV, e art. 5º, XIII, CF/88). Isso porque obrigar bares, restaurantes e estabelecimentos similares a concederem descontos especiais ou prato de porção reduzida revelaria indevida e desproporcional ingerência à livre iniciativa e à livre concorrência, já que o modelo de mercado adotado pelo Brasil – capitalismo – não permite, de regra, intromissões pelo Estado, garantindo-se autonomia ao empresário para, dentro de certas condições básicas de funcionamento, estipular a forma de prestação de seus serviços, de acordo com os custos que só ele deverá suportar.

Inclusive, nesse sentido, o artigo 174, caput, da CF/88 é esclarecedor: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.” Ou seja, as medidas que impliquem regulação do mercado econômico possuem natureza meramente indicativa quando voltadas ao setor privado, não sendo possível a imposição pelo Poder Público.

Conforme leciona Luís Roberto Barroso (A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 14, maio, junho e julho/2008, Salvador/BA),

O que o Estado não pode pretender, sob pena de subverter os papéis, é que a empresa privada, em lugar de buscar o lucro, oriente sua atividade para consecução dos princípios-fins da ordem econômica como um todo, com sacrifício da livre-iniciativa. Isto seria dirigismo, uma opção por um modelo historicamente superado. O Poder Público não pode supor, e.g., que uma empresa esteja obrigada a admitir um número “x” de empregados, independentemente de suas necessidades, apenas para promover o pleno emprego. Ou ainda que o setor privado deva compulsoriamente doar produtos para aqueles que não têm condições de adquiri-los, ou que se instalem fábricas obrigatoriamente em determinadas regiões do País, de modo a impulsionar seu desenvolvimento. Ao Estado, e não à iniciativa privada, cabe desenvolver ou estimar práticas redistributivas ou assistencialistas. É do Poder Público a responsabilidade primária. Poderá desincumbir-se dela por iniciativa própria ou estimulando comportamentos da iniciativa privada que conduzam a esses resultados, oferecendo vantagens fiscais, financiamentos, melhores condições de exercício de determinadas atividades, dentre outras formas de fomento”.

Em artigo publicado na Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 43, n. 141, em dezembro/2016, Cláudio Kaminski Tavares analisou o acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2038277-66.2014.8.26.0000, que retirou do ordenamento jurídico a Lei Municipal nº 5.511/13, do Município de Sumaré/SP, que dispunha sobre a obrigatoriedade dos restaurantes e similares concederem descontos ou meia porção para pessoas que passaram por intervenção cirúrgica de redução de estômago (doc. anexo). Destacam-se os seguintes trechos, relevantes para a análise do objeto do projeto de lei:

Assim, revela-se acertada a decisão ao considerar que a lei municipal possui caráter e alcance nacional, na medida em que sua aplicação não se restringe somente à população do Município, bem como dispondo sobre o comércio de alimentos e consumo, e não havendo qualquer autorização adequada a tanto, nos termos do parágrafo único do art. 22 da Constituição Federal, impossível não reconhecer que a referida lei invade a competência da União e extrapola a limitação imposta pelo art. 30, inciso I, da Constituição Federal, o que lhe torna, portanto, formalmente inconstitucional.

Contudo, a lei em questão também figura materialmente inconstitucional. Conforme assinala Luiz Guilherme Marinoni, a inconstitucionalidade material diz respeito à não conformação do conteúdo da lei para com as regras e os princípios constitucionais, de modo que a liberdade do legislador deve ser exercida dentro dos limites constitucionais. No caso, consoante entendeu o Tribunal paulista, a discutida lei não está em consonância com a disciplina e os valores constitucionais, mais especificamente no que tange à proteção da livre iniciativa.

No Município de Porto Alegre, está em vigor a Lei Municipal nº 11.746, promulgada em 19 de dezembro de 2014, que torna obrigatório aos bares, restaurantes e estabelecimentos similares conceder desconto especial ou a oferta de prato especial de porção reduzida às pessoas que realizaram cirurgia bariátrica ou outra gastroplastia para a redução do estômago. Ocorre que, em análise do Projeto de Lei nº 118/13, que originou a referida lei municipal, constata-se que a Comissão de Constituição e Justiça não acompanhou o parecer jurídico da Procuradoria da Casa Legislativa, que foi contrário à proposta sob o fundamento de indevida interferência no livre exercício da atividade econômica e de violação aos preceitos constitucionais que resguardam a livre iniciativa.

Portanto, o direito é garantido no Município de Porto Alegre, mas o parecer da Procuradoria defende não haver sustentação jurídica para a medida aprovada, que está sujeita ao controle de constitucionalidade, a qualquer tempo, por iniciativa de algum dos legitimados previstos no artigo 95, § 2º, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.

Assim, embora o direito ao desconto especial ou ao prato de porção reduzida, por imposição aos proprietários de bares, restaurantes e estabelecimentos similares, seja garantido no Município de Porto Alegre, certo é que medidas similares, quando analisadas sob o ponto de vista jurídico – inclusive pelo Judiciário, em ações diretas de inconstitucionalidade –, vêm sendo retiradas do ordenamento jurídico por violação às regras de competência previstas nos artigos 22, I, e 24, V, da CF/88, bem como por afronta aos princípios da livre atividade econômica e da livre concorrência (artigos 170, 1º, IV, e 5º, XIII,CF/88). Resumidamente, caso seja aprovado o Projeto de Lei nº 086/2017 e, eventualmente, algum legitimado ingresse com ação direta de inconstitucionalidade perante o TJ/RS, é bem possível que seja retirada a lei municipal do ordenamento jurídico, diante de todos os precedentes sobre a matéria em outros tribunais. 

Conclusão:

Diante do exposto, a Procuradoria opina pela inviabilidade jurídica do Projeto de Lei nº 086/2017, diante da existência de vícios formais e materiais que impedem a regular tramitação da proposta perante a Câmara Municipal de Vereadores.

Guaíba, 08 de novembro de 2017.

GUSTAVO DOBLER

Procurador Jurídico



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